domingo, 16 de maio de 2021

Projecto Bacalhau: Notas & Fotos Finais


Algumas notas sobre viagens aventura de longo curso e outros projectos assim mais malucos. Cabe talvez realçar que o mais importante nesta questão não são as finanças, ou negociar o tempo suficiente longe do trabalho e de muitas outras responsabilidades. Nem é o treino, a preparação física, a compra do material para a bicicleta, a roupa, o planeamento exaustivo da viagem em termos de geografia, estradas, previsões meteorológicas, cálculo de distâncias diárias, etc. 

Não, por mais trabalhoso que seja resolver estas questões prácticas, que são importantes, o mais complicado é mesmo decidir ir. Parece simples, mas não é. Tem de haver motivação, e essa não surge do nada. É preciso querer mesmo ir, estar motivado é a única forma de sobreviver sozinho, na estrada, dia após dia. Quando as coisas começarem a correr mal, e vão correr mal em alguma altura, não pode haver dúvidas que é ali que queres estar. 

Resolvida esta questão, tudo o resto se torna mais manejável e as coisas acontecem. 

E uma nota final: não esperem que todos compreendam a vossa vontade de devorar quilómetros. Haverá quem vos tente desmoralizar, colocando buracos nos vossos planos. Por vezes é um amigo bem intencionado, que julga que te vai salvar de um embaraçoso falhanço. Por vezes é alguém mais invejoso, que considera impossível que faças algo que ele próprio nunca conseguiria. Eu tive quem me dissesse que a viagem acabaria ao segundo dia na parte de trás de uma ambulância. E tive gente a dizer-me que eu parava demais, que parava de menos, e porque é que não ia a museus, que ia demasiado depressa, que ia demasiado devagar...  

Uma viagem destas é tua, não é de mais ninguém. Seria bonito, mas não esperes que toda a gente apoie a tua decisão. Ela pode parecer a algumas pessoas uma coisa demasiado estranha. E as pessoas não lidam muito bem com o que não compreendem. 

Dito isto, também ninguém faz nada sozinho. Eu contei com o apoio à distancia de vários amigos que vibraram com as noticias do meu progresso e me animaram ao longo do caminho. E do inestimável apoio em coisas mais técnicas do meu amigo João Serôdio, ao contrário de mim, um atleta a sério. Graças a ele, a minha posição na bicicleta estava muito bem afinada e não tive quaisquer problemas físicos. Obrigado João!

Deixo-vos com mais algumas imagens, para quem busque inspiração.






































































sábado, 15 de maio de 2021

Projecto Bacalhau: Dia 23 - Até ao Fim

Almada. O Isaltinistão ali tão perto

A manhã do último dia começa em algumas das estradas onde eu mais evitaria pedalar em Portugal. As nacionais ao redor de Sines. Sem bermas, sempre com trânsito relativamente denso e rápido, e com malta que ultrapassa as bicicletas de qualquer maneira. Um TIR passou a milímetros do meu guiador e o Dentuça chamou-lhe nomes que eu nem sabia existirem. Este percurso foi tanto mais inglório porque eu fui mesmo obrigado a voltar para trás. Eu explico: há poucos anos algum iluminado resolveu caçar uns votos "inaugurando" uma autoestrada nesta zona, ou melhor, mudando o nome à antiga estrada de duas faixas por sentido que vinha para Sines, e com a alteração, para sempre banindo os velocípedes de ali circularem.

 

Por aqui?


Embora tudo indicasse o contrário, eu estava convencido que existiria um caminho para Norte para bicicletas, passando por Sines, mas evitando a dita A26, e o GPS, por uma vez, concordava comigo. O que eu não contava era com o que seria preciso para sair dali sem usar a dita nova "autoestrada". Para o GPS um caminho é um caminho. Mas eu é que tenho que lá passar!


Por aqui??


Primeiro tive de usar uns acessos a um estacionamento, depois tive de contornar por trilhos a refinaria e os depósitos de hidrocarbonetos de Sines. Mais tarde andei mesmo no meio do mato, usei umas estradas de acesso para trabalhadores da refinaria e depois de circular numa linha férrea encerrada, lá encontrei uma saída para uma estrada nacional que seguia para Norte. 


Por aqui!


Quando finalmente vi a zona de Sines pelas costas, realmente tinha evitado a autoestrada, mas era quase hora de almoço e o calor apertava. Tinha os pulsos em mau estado, devido ao piso e o terreno que tinha atravessado, e estava a ficar claro que não haveria pausa para almoço, não se eu queria estar em casa, no Isaltinistão, antes de escurecer.


Hum...


Cheguei sem muitos incidentes a Troia, mas sempre debaixo de imenso calor. O trânsito cada vez mais intenso e os condutores que desprezam a vida dos outros vão tirando alguma piada a circular por estas bandas. Nesta altura ainda faltavam duas travessias de ferry e mais de 40Km para eu chegar a casa, mas eu sentia que era já mesmo ali ao lado.


No Ferry



Pronta para os últimos Km


Não era. No Ferry para Setúbal vimos golfinhos e a criançada a bordo correu para ver os simpáticos animais, que pareciam saudar a nossa passagem. Foi um momento de serenidade, que não me preparou para o que viria a seguir. A subida à saída de Setúbal fui brutal. Pouco depois encontrava um trânsito absolutamente infernal entre Setúbal e Almada, em hora de ponta e debaixo de um calor abrasador. Filas e filas de transito caótico, os paquidermes metálicos enfurecidos, que eu contornava e deixava para trás, apesar do cansaço dos mais de cem quilómetros nas pernas.


De maneiras que foi isto

Suponho que não poderia ser de outra maneira, haveria esforço até ao fim. Em Almada tive de correr para o barco. Uns minutos depois estávamos a ser libertados na outra margem, no Cais do Sodré. O Dentuça exclamou um sentido "I'm back, bitches!" mas a euforia durou-lhe pouco. A rolar lentamente numa Marginal repleta de carros, uma certa melancolia pareceu instalar-se. Parecia incrível estar de volta, mas era verdade, ali estávamos nós, 23 dias e 1900Km depois, practicamente de volta ao ponto de partida. No ar andava uma pergunta, pesada, inevitável, incontornável. "E agora?"

Para libertar a mente destas questões fracturantes, comecei a assobiar o tema de Lucky Luke, como tinha feito em tantos outros finais de dia, nas semanas anteriores. Depressa o Dentuça me acompanhou e juntos cantarolamos pela estrada fora, enquanto mergulhávamos cada vez mais no caos do fim do dia do Isaltinistão. 



Km finais: 1909


Obrigado a todos os que seguiram esta pequena saga desde o início, espero ter motivado alguém a fazer uma viagem mais longa de bicicleta ou ajudado a esclarecer o que acontece, ou pode acontecer, num tour deste género. Estarei disponível nos comentários para questões que surjam. 

Espero também encontrar alguns de vós na estrada. O tempo está excelente. Boas pedaladas!

Dia 23. Porto Covo-Isaltinistão. 153Km. (Estrada/Trilhos)

sexta-feira, 14 de maio de 2021

Projecto Bacalhau: Dia 22 - Roendo uma Laranja na Falésia

Porto Covo


Olhando o mundo azul à minha frente, penso em todos os sítios por onde andamos nas últimas semanas. Do profano ao sagrado, da grande urbe ao parque natural, do litoral ao interior, o Dentuça e eu vagueamos ao nosso ritmo e ao sabor do vento, por algumas das mais belas estradas do nosso país. 

Esta manhã tomámos um descansado pequeno almoço em Lagos. Mas o ambiente turístico do Algarve não me convence. As pessoas dos hotéis e restaurantes do Sul parecem demasiado mercenárias.  A moça do alojamento de Lagos, depois de me fazer esperar uma boa meia hora, fez o equivalente a atirar as chaves para o chão e dizer "desenrasca-te, eu tenho que voltar para a praia". As boas gentes da N2 deixaram-me talvez mal acostumado.  


Dizem que havia um pessegueiro na ilha


O vento sopra do mar, e na tranquilidade daquele miradouro de Porto Covo, com a barriga cheia de piza obtida ali ao lado, em Vila Nova de Milfontes, eu sei que tudo está prestes a acabar. Toda esta liberdade, esta alegre vagabundagem, vai ter mesmo um fim. Mas estou em paz com essa ideia. E isso será outro dia, por hoje tenho esta paisagem. E a brisa que sopra. E um mar de recordações.


Isto é capaz de não ser normal


O corpo talvez agradeça um descanso também. Nem todas as mazelas dos primeiros dias sararam completamente. O Sol de Junho continuou a fazer estragos. Eu sinto que poderia prosseguir, talvez indefinidamente, mas também não será má ideia dar atenção a estas pequenas coisas.  



Porto Covo


Casa, por hoje

Para aquele que será o último jantar na Estrada, faço questão de comprar uns petiscos no mini mercado local e fazer uma festa de despedida no parque de campismo de Porto Covo, onde chegamos depois do almoço, fazendo o caminho mais directo desde Lagos. A opção de rumar a Norte deveu-se à falta de entusiasmo para ir até Sagres, onde já estive muitas vezes de bicicleta, e àquela sensação omnipresente de que isto está terminado.


Vila Nova de Milfontes


Rio Mira e o Mar, em Milfontes


Dia 22
. Lagos-Porto Covo. 112 Km. (Estrada)

quinta-feira, 13 de maio de 2021

Projecto Bacalhau: Dia 21 - Lagos


Acordo numa belíssima Guest House vazia, algures em Faro. Vazia até às obras começarem, aparentemente do nada surgem homens das obras que estão a renovar uma zona contigua, que comunica misteriosamente com a Guest House. Circulam livremente pela casa que eu julgava vazia. Refeito da surpresa, pequeno almoço tomado, aproveitando a cozinha apetrechada e as sobras do jantar da noite anterior, agarro na bicicleta e saio para a rua. 

Mas para fazer o quê? Ir para onde? Desde o fim da tarde de ontem que se instalou uma crescente e inevitável sensação de que esta viagem chegou ao fim. Ainda estou a 300 ou 400Km de casa, num Algarve solarengo. Mas esta zona, e o litoral Alentejano, já foram por mim bastante exploradas de bicicleta e não exercem o mesmo fascínio que, por exemplo, uma N2, feita pela primeira vez. Depois de três semanas na estrada, talvez precise apenas de descansar. Seja como for, a expedição tem a sua própria inercia, e tal como um super petroleiro carregado, não pode parar repentinamente.  


Mais um parque de merendas


E assim arranco na direção de Lagos, com a vaga intenção de ir passear por lá, já que gosto bem mais dessa cidade do que de Faro. O caminho sugerido pelo GPS não é grande coisa e há muito mais trânsito que aquilo a que me vim acostumando nos últimos tempos. Há muita gente, muito betão, muita urbe, muita confusão para o meu gosto. 


Puro Algarve


A jornada termina sem grande história em Lagos, pela hora do almoço. Reservo dormida e vou passear pela cidade. A sensação de melancolia persiste. Talvez me faça bem um pouco de descanso.


Ruelas de Lagos


Alojamento


Dia 21. Faro-Lagos. 100Km. (Estrada).

quarta-feira, 12 de maio de 2021

Projecto Bacalhau: Dia 20 - 40º à Sombra

Amanhece no Torrão


Saio para a rua com a sensação de estar atrasado. Os meus movimentos são lentos e torpes. Parece que já estou cansado. É o vigésimo dia da viagem e o sexto na N2. São quase nove horas e já se sente algum calor. Recupero a minha bicicleta do anexo e dou uma olhada no equipamento. Tenho 2 litros de água, que não deve durar muito no calor do dia, e tudo o resto parece em ordem. Penso nas vezes que já tentei este tipo de distâncias antes. Contam-se pelos dedos de uma mão. E na altura não tinha que lidar com carga, e nem com o calor. Mas Faro parece ali ao lado, tenho pelo menos que tentar. 


N2 rumo a Faro!


Nada mais há a fazer senão começar. Essa primeira pedalada é sempre a mais importante. Depois de termos chegado à conclusão de que vamos mesmo fazer aqueles quilómetros, depois de isso estar decidido, de estar assente, o resto são formalidades. Podem ser muitas horas de sofrimento, de suor e lágrimas, mas são apenas formalidades. O teu corpo chega até onde o teu cérebro admitir que é possível chegar. 



Mais um excelente parque de merendas


Trato de imprimir um ritmo severo. Sei que para o fim do dia a média irá inevitavelmente baixar, mas para já trato de manter-nos sempre acima dos 30Km/h. De início é fácil ir rolando depressa pela paisagem plana. Mas a meio da manhã o calor já é impossível de ignorar. Parece que estamos a ser secos pelo Sol, provavelmente porque é mesmo isso que está a acontecer. É preciso beber constantemente para evitar problemas. 



N2 ao Sol


Para animar a manhã, cruzo-me com muitos ciclistas na estrada, e quase todos acenam. É um agradável  caso raro, o ciclista de estrada português deixa algo a desejar neste capítulo. A questão do aceno tem importância, porque reforça o sentido de comunidade. Na estrada somos o utilizador mais vulnerável e é bom sentir que podemos contar com o eventual apoio de desconhecidos se tivermos um problema ou emergência, no meio de sítio nenhum. A malta que não acena, que propositadamente não responde a um destes cumprimentos, o que está a fazer é indicar que não pertence à comunidade e que não se deve contar com eles para absolutamente nada. É engraçado como alguns ciclistas reagem, olham para a bicicleta, para o ciclista, como que somando o valor do equipamento à vista e depois então decidem se vale a pena responder ao aceno.  Eu serei muito mal vestido, pois normalmente só consigo cerca de 50% de respostas.



Castro Verde


As paragens para me esconder por uns minutos do Sol abrasador vão aumentando, servindo também para reabastecimento de líquidos e comida. Decido não parar para almoço e continuo estrada fora no calor do meio dia. Manter o ritmo é essencial e há qualquer coisa de viciante em ver os quilómetros a passar, a acumularem-se, o destino cada vez mais ao alcance.


Almodovar

 
Mas o calor é implacável. Não há uma nuvem no céu e não há brisa que refresque. Apenas a deslocação do ar da nossa velocidade permite algum conforto, mas esse vem à conta do esforço e eu não consigo manter o ritmo indefinidamente. A média começa a baixar e há mesmo uma altura em que tenho que procurar abrigo em mais uma paragem de autocarro, um pedaço de sombra, uma ilha num vasto oceano de calor abrasador.



Na paragem do Autocarro


Mas na paragem de autocarro não se acumulam quilómetros, nem nos supermercados, cafés, tascas e parques de merendas onde eu foi parando, em busca de abrigo e líquidos. O progresso faz-se na estrada solitária, pedalada após pedalada. A estrada que não se incomoda com a nossa indumentária, a estrada não quer saber a marca da tua bicicleta, nem se interessa pelo fabricante do teu GPS, a N2 não te vai julgar se os teus sapatos são de BTT e estão a ser usados em estrada. A estrada não te julga pela tua cadência nem pela altura das tuas meias, mas fica sempre satisfeita de te ver de volta.  


No cimo do Caldeirão


O calor já tinha feito estragos quando sou recordado de que o pior ainda estava para vir. Todos os ciclistas sabem que não se chega ao Algarve sem passar a serra do Caldeirão primeiro. Não serão propriamente os Alpes, mas o nome não engana ninguém. E quando o pavimento começa a inclinar eu já levo muitos quilómetros nas pernas. E as coisas começam a ficar confusas.


40º C


O termómetro marca agora 40º C e não parece que haja alivio à vista. Como noutros momentos na vida, a única solução é continuar, a única vitória possível agora é persistir. Uma pedalada depois da outra. Uma pedalada depois da outra. Como que em transe, o Dentuça e eu continuamos numa marcha de condenados, com um ritmo que provavelmente não seria recomendável com este tempo, mas enquanto houver forças, e água, eu quero chegar depressa.   


Faro! Yes! Ou será Caracas..?


Depois de muito subir, e muito penar, a paisagem vai ficando progressivamente mais urbana, e isso só pode significar que estamos a chegar. Infelizmente, depois desta cavalgada histórica, depois dos 170Km épicos, a entrada de Faro, os subúrbios, mais parece que entramos numa qualquer cidade de segunda importância da América Latina. Sem ofensa, mas por aqui tudo é sujo, tudo é feio, tudo é desordenado. Baldios, bermas cheias de entulho e lixo, carroças puxadas por burros, isto, aparentemente, é Faro.  


Ah pois é!


Km 738!

A histórica N2 termina (agora) numa rotunda urbana. Enquanto trato das fotos da praxe e me congratulo por ter concluído a travessia da estrada em 6 dias, menos um que o previsto, começo a sentir uma ligeira ansiedade a vir à tona. Está tudo muito bem, objectivo cumprido e coisa e tal, mas... E o que acontece agora? 


Bacalhau!

Dia 20. Torrão-Faro. 170Km. (Estrada).