quarta-feira, 12 de maio de 2021

Projecto Bacalhau: Dia 20 - 40º à Sombra

Amanhece no Torrão


Saio para a rua com a sensação de estar atrasado. Os meus movimentos são lentos e torpes. Parece que já estou cansado. É o vigésimo dia da viagem e o sexto na N2. São quase nove horas e já se sente algum calor. Recupero a minha bicicleta do anexo e dou uma olhada no equipamento. Tenho 2 litros de água, que não deve durar muito no calor do dia, e tudo o resto parece em ordem. Penso nas vezes que já tentei este tipo de distâncias antes. Contam-se pelos dedos de uma mão. E na altura não tinha que lidar com carga, e nem com o calor. Mas Faro parece ali ao lado, tenho pelo menos que tentar. 


N2 rumo a Faro!


Nada mais há a fazer senão começar. Essa primeira pedalada é sempre a mais importante. Depois de termos chegado à conclusão de que vamos mesmo fazer aqueles quilómetros, depois de isso estar decidido, de estar assente, o resto são formalidades. Podem ser muitas horas de sofrimento, de suor e lágrimas, mas são apenas formalidades. O teu corpo chega até onde o teu cérebro admitir que é possível chegar. 



Mais um excelente parque de merendas


Trato de imprimir um ritmo severo. Sei que para o fim do dia a média irá inevitavelmente baixar, mas para já trato de manter-nos sempre acima dos 30Km/h. De início é fácil ir rolando depressa pela paisagem plana. Mas a meio da manhã o calor já é impossível de ignorar. Parece que estamos a ser secos pelo Sol, provavelmente porque é mesmo isso que está a acontecer. É preciso beber constantemente para evitar problemas. 



N2 ao Sol


Para animar a manhã, cruzo-me com muitos ciclistas na estrada, e quase todos acenam. É um agradável  caso raro, o ciclista de estrada português deixa algo a desejar neste capítulo. A questão do aceno tem importância, porque reforça o sentido de comunidade. Na estrada somos o utilizador mais vulnerável e é bom sentir que podemos contar com o eventual apoio de desconhecidos se tivermos um problema ou emergência, no meio de sítio nenhum. A malta que não acena, que propositadamente não responde a um destes cumprimentos, o que está a fazer é indicar que não pertence à comunidade e que não se deve contar com eles para absolutamente nada. É engraçado como alguns ciclistas reagem, olham para a bicicleta, para o ciclista, como que somando o valor do equipamento à vista e depois então decidem se vale a pena responder ao aceno.  Eu serei muito mal vestido, pois normalmente só consigo cerca de 50% de respostas.



Castro Verde


As paragens para me esconder por uns minutos do Sol abrasador vão aumentando, servindo também para reabastecimento de líquidos e comida. Decido não parar para almoço e continuo estrada fora no calor do meio dia. Manter o ritmo é essencial e há qualquer coisa de viciante em ver os quilómetros a passar, a acumularem-se, o destino cada vez mais ao alcance.


Almodovar

 
Mas o calor é implacável. Não há uma nuvem no céu e não há brisa que refresque. Apenas a deslocação do ar da nossa velocidade permite algum conforto, mas esse vem à conta do esforço e eu não consigo manter o ritmo indefinidamente. A média começa a baixar e há mesmo uma altura em que tenho que procurar abrigo em mais uma paragem de autocarro, um pedaço de sombra, uma ilha num vasto oceano de calor abrasador.



Na paragem do Autocarro


Mas na paragem de autocarro não se acumulam quilómetros, nem nos supermercados, cafés, tascas e parques de merendas onde eu foi parando, em busca de abrigo e líquidos. O progresso faz-se na estrada solitária, pedalada após pedalada. A estrada que não se incomoda com a nossa indumentária, a estrada não quer saber a marca da tua bicicleta, nem se interessa pelo fabricante do teu GPS, a N2 não te vai julgar se os teus sapatos são de BTT e estão a ser usados em estrada. A estrada não te julga pela tua cadência nem pela altura das tuas meias, mas fica sempre satisfeita de te ver de volta.  


No cimo do Caldeirão


O calor já tinha feito estragos quando sou recordado de que o pior ainda estava para vir. Todos os ciclistas sabem que não se chega ao Algarve sem passar a serra do Caldeirão primeiro. Não serão propriamente os Alpes, mas o nome não engana ninguém. E quando o pavimento começa a inclinar eu já levo muitos quilómetros nas pernas. E as coisas começam a ficar confusas.


40º C


O termómetro marca agora 40º C e não parece que haja alivio à vista. Como noutros momentos na vida, a única solução é continuar, a única vitória possível agora é persistir. Uma pedalada depois da outra. Uma pedalada depois da outra. Como que em transe, o Dentuça e eu continuamos numa marcha de condenados, com um ritmo que provavelmente não seria recomendável com este tempo, mas enquanto houver forças, e água, eu quero chegar depressa.   


Faro! Yes! Ou será Caracas..?


Depois de muito subir, e muito penar, a paisagem vai ficando progressivamente mais urbana, e isso só pode significar que estamos a chegar. Infelizmente, depois desta cavalgada histórica, depois dos 170Km épicos, a entrada de Faro, os subúrbios, mais parece que entramos numa qualquer cidade de segunda importância da América Latina. Sem ofensa, mas por aqui tudo é sujo, tudo é feio, tudo é desordenado. Baldios, bermas cheias de entulho e lixo, carroças puxadas por burros, isto, aparentemente, é Faro.  


Ah pois é!


Km 738!

A histórica N2 termina (agora) numa rotunda urbana. Enquanto trato das fotos da praxe e me congratulo por ter concluído a travessia da estrada em 6 dias, menos um que o previsto, começo a sentir uma ligeira ansiedade a vir à tona. Está tudo muito bem, objectivo cumprido e coisa e tal, mas... E o que acontece agora? 


Bacalhau!

Dia 20. Torrão-Faro. 170Km. (Estrada). 

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