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Amanhece no Torrão |
Saio para a rua com a sensação de estar atrasado. Os meus movimentos são lentos e torpes. Parece que já estou cansado. É o vigésimo dia da viagem e o sexto na N2. São quase nove horas e já se sente algum calor. Recupero a minha bicicleta do anexo e dou uma olhada no equipamento. Tenho 2 litros de água, que não deve durar muito no calor do dia, e tudo o resto parece em ordem. Penso nas vezes que já tentei este tipo de distâncias antes. Contam-se pelos dedos de uma mão. E na altura não tinha que lidar com carga, e nem com o calor. Mas Faro parece ali ao lado, tenho pelo menos que tentar.
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N2 rumo a Faro! |
Nada mais há a fazer senão começar. Essa primeira pedalada é sempre a mais importante. Depois de termos chegado à conclusão de que vamos mesmo fazer aqueles quilómetros, depois de isso estar decidido, de estar assente, o resto são formalidades. Podem ser muitas horas de sofrimento, de suor e lágrimas, mas são apenas formalidades. O teu corpo chega até onde o teu cérebro admitir que é possível chegar.
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Mais um excelente parque de merendas |
Trato de imprimir um ritmo severo. Sei que para o fim do dia a média irá inevitavelmente baixar, mas para já trato de manter-nos sempre acima dos 30Km/h. De início é fácil ir rolando depressa pela paisagem plana. Mas a meio da manhã o calor já é impossível de ignorar. Parece que estamos a ser secos pelo Sol, provavelmente porque é mesmo isso que está a acontecer. É preciso beber constantemente para evitar problemas.
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N2 ao Sol |
Para animar a manhã, cruzo-me com muitos ciclistas na estrada, e quase todos acenam. É um agradável caso raro, o ciclista de estrada português deixa algo a desejar neste capítulo. A questão do aceno tem importância, porque reforça o sentido de comunidade. Na estrada somos o utilizador mais vulnerável e é bom sentir que podemos contar com o eventual apoio de desconhecidos se tivermos um problema ou emergência, no meio de sítio nenhum. A malta que não acena, que propositadamente não responde a um destes cumprimentos, o que está a fazer é indicar que não pertence à comunidade e que não se deve contar com eles para absolutamente nada. É engraçado como alguns ciclistas reagem, olham para a bicicleta, para o ciclista, como que somando o valor do equipamento à vista e depois então decidem se vale a pena responder ao aceno. Eu serei muito mal vestido, pois normalmente só consigo cerca de 50% de respostas.
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Castro Verde |
As paragens para me esconder por uns minutos do Sol abrasador vão aumentando, servindo também para reabastecimento de líquidos e comida. Decido não parar para almoço e continuo estrada fora no calor do meio dia. Manter o ritmo é essencial e há qualquer coisa de viciante em ver os quilómetros a passar, a acumularem-se, o destino cada vez mais ao alcance.
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Almodovar |
Mas o calor é implacável. Não há uma nuvem no céu e não há brisa que refresque. Apenas a deslocação do ar da nossa velocidade permite algum conforto, mas esse vem à conta do esforço e eu não consigo manter o ritmo indefinidamente. A média começa a baixar e há mesmo uma altura em que tenho que procurar abrigo em mais uma paragem de autocarro, um pedaço de sombra, uma ilha num vasto oceano de calor abrasador.
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Na paragem do Autocarro |
Mas na paragem de autocarro não se acumulam quilómetros, nem nos supermercados, cafés, tascas e parques de merendas onde eu foi parando, em busca de abrigo e líquidos. O progresso faz-se na estrada solitária, pedalada após pedalada. A estrada que não se incomoda com a nossa indumentária, a estrada não quer saber a marca da tua bicicleta, nem se interessa pelo fabricante do teu GPS, a N2 não te vai julgar se os teus sapatos são de BTT e estão a ser usados em estrada. A estrada não te julga pela tua cadência nem pela altura das tuas meias, mas fica sempre satisfeita de te ver de volta.
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No cimo do Caldeirão |
O calor já tinha feito estragos quando sou recordado de que o pior ainda estava para vir. Todos os ciclistas sabem que não se chega ao Algarve sem passar a serra do Caldeirão primeiro. Não serão propriamente os Alpes, mas o nome não engana ninguém. E quando o pavimento começa a inclinar eu já levo muitos quilómetros nas pernas. E as coisas começam a ficar confusas.
O termómetro marca agora 40º C e não parece que haja alivio à vista. Como noutros momentos na vida, a única solução é continuar, a única vitória possível agora é persistir. Uma pedalada depois da outra. Uma pedalada depois da outra. Como que em transe, o Dentuça e eu continuamos numa marcha de condenados, com um ritmo que provavelmente não seria recomendável com este tempo, mas enquanto houver forças, e água, eu quero chegar depressa.
Depois de muito subir, e muito penar, a paisagem vai ficando progressivamente mais urbana, e isso só pode significar que estamos a chegar. Infelizmente, depois desta cavalgada histórica, depois dos 170Km épicos, a entrada de Faro, os subúrbios, mais parece que entramos numa qualquer cidade de segunda importância da América Latina. Sem ofensa, mas por aqui tudo é sujo, tudo é feio, tudo é desordenado. Baldios, bermas cheias de entulho e lixo, carroças puxadas por burros, isto, aparentemente, é Faro.
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Ah pois é! |
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Km 738! |
A histórica N2 termina (agora) numa rotunda urbana. Enquanto trato das fotos da praxe e me congratulo por ter concluído a travessia da estrada em 6 dias, menos um que o previsto, começo a sentir uma ligeira ansiedade a vir à tona. Está tudo muito bem, objectivo cumprido e coisa e tal, mas... E o que acontece agora?
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