sexta-feira, 30 de abril de 2021

Projecto Bacalhau: Dia 8 - O Brilho da Invicta

O Porto a dar o máximo. Como habitualmente

É o oitavo dia da expedição e o Dentuça e eu acordamos no Parque de Campismo da máfia local, tendo concluído que este espaço só pode ser parte de algum engenhoso esquema de lavagem de dinheiro. O empregado desconfiado da recepção do dia de ontem tinha acabado por confessar que era o seu primeiro dia naquele trabalho, e por isso estava algo hesitante, mas nós não nos deixamos enganar. O que aqui se passa é claramente coisa do crime organizado!

Cometo o erro de não abandonar o lugar tão depressa quanto possível, e uma vez que ali havia uma pastelaria, resolvi que o melhor era sair já com o pequeno almoço tomado. A pastelaria parecia ser aliás mais importante que o próprio parque, já que era ampla e servia as muitas pessoas que passeavam à beira mar. Poder-se-ia mesmo dizer que se tratava de uma pastelaria com parque de campismo, e não ao contrário. 

Mas ainda antes de conseguir comer alguma coisa, já estava a ser repreendido sem contemplações, por ter encostado a bicicleta a uma parede, onde não estorvava ninguém. Fui então obrigado a deixar a bicicleta já carregada num daqueles estacionamentos entorta-rodas, longe da vista. Achei que não valia a pena perder muito mais tempo por ali, e fui devolver o meu cartão do parque, mas não havendo ninguém na recepção, tentei entrega-lo na pastelaria. Uma senhora disse que sim, podia ficar com o cartão, mas deixou logo bem claro que não me podia deixar sair, já que não tinha confirmação de que eu tinha pago. (Eu tinha, na tarde anterior). Eu disse que aguardaria que ela confirmasse e ela disse que eu teria mesmo que esperar pelo patrão, que ela não sabia onde se encontrava nem quando viria.

Nesta altura tive que tapar a boca ao dentuça, e controlei-me eu próprio para não lhe dizer onde é que ela podia por o cartão e mais o patrão e as regras da casa. Acabei por sair sem voltar a ver o capo da cosa nostra local, mas desconfio que ele deve ter autorizado a minha saída pelo telefone, porque ninguém veio a correr atrás de mim, quando montei na bicicleta e rumei ao Porto.


    Baby needs a new pair of shoes


Tinha que me organizar. Hoje tinha coisas para fazer! Depois de uma semana a vagabundear pelo país, sem grandes pressas ou obrigações, hoje tinha planos para concretizar. Primeiro na lista estava comprar uns sapatos. As exigentes caminhadas dos últimos dias tinham deixado os meus históricos Shimano em muito mau estado, e eu já não acreditava que resistissem ao resto da viagem, pelo que queria aproveitar que estava numa grande cidade para trocar de sapatos. 


O Douro pela manhã

Não tive grande sucesso nas lojas de bicicletas dos arredores de Gaia e resolvi ir para o Porto. A ideia era seguir sempre pela costa, primeiro, e depois pela margem do Douro, até à ponte D. Luís. De notar que, embora aqui tenha passado muito pouco tempo da minha vida, eu nasci em Gaia, e tenho muito boas recordações do Porto, pelo que aquela manhã tinha um sabor muito especial.


Ah, o Porto...

E foi assim que fiz toda a excelente ciclovia até à marina do Douro e passei para a estrada, na Afurada. O caminho serpenteava junto ao rio, passando também por velhos armazéns e palacetes. Vi barcos rabelos a serem reparados (construídos?), turistas a passear e a silhueta familiar do Porto a ser progressivamente revelada, na outra margem. Havia uma luz incrível junto ao Douro naquela manhã e, por alguma razão, nenhum carro na estrada. Abrandei o ritmo, pois sabia que dentro de nada estaria na ponte D. Luís. Queria apreciar o momento. A luz, a vista, a estrada vazia, o som da corrente a deslizar nos carretos da bicicleta, que me tinha trazido até ali, ecoava pela rua. Parecia tudo tão... Perfeito. Naquele instante, não precisava de absolutamente mais nada. Já tive outros momentos assim, mas não muitos.

  

Não havia miudagem a saltar para a água


Atravessando para o outro lado, esta tranquilidade foi logo substituída pela agitação da cidade invicta. E a determinada altura tive que me afastar do rio, já que tinha que tratar da segunda coisa na minha lista do dia: o almoço com a ex. Efectivamente: tinha combinado almoçar com uma amiga que em tempos tinha sido muito mais do que isso, e com quem eu não tinha um programa de qualquer tipo há mais de dois anos. O constrangimento estava no ar, mas eu queria mesmo vê-la, saber dela, e normalizar o contacto, se possível.

Além de tudo, era a minha primeira interacção social de algum relevo desde que iniciara a viagem e confesso que estava nervoso. O Dentuça mal podia conter conter o riso, enquanto eu me atrapalhava a subir as escadas do prédio onde tinha estado inúmeras vezes. Uma pesada porta corta fogo, de mola automática, chegou mesmo a acertar em cheio no quadro da bicicleta e acho que falhei um batimento cardíaco ou dois. Mas não houve estrago. 

O almoço decorreu num ambiente a que eu, naquele contexto, não estava habituado. Falámos de coisas sérias, de família, de responsabilidades, de preocupações. Além disso, ela estava na pausa do almoço e tinha coisas para fazer, horário a cumprir. E ali estava eu, a disfrutar da companhia, e do almoço que me era oferecido, sem pressas, sem horários, e sem uma preocupação no mundo. 


Simples, mas mesmo o que estava à procura


Vim-me embora a sentir-me profundamente privilegiado por ter esta oportunidade na minha vida e mais decidido ainda a viver a minha volta a Portugal com a intensidade e dedicação que a ocasião merecia. Recebi ainda uma valiosa dica para uma loja de bicicletas ali ao lado, que talvez tivesse sapatos para mim. E assim era, tive que esperar que a loja abrisse, mas logo depois, em poucos minutos estava de volta à estrada, com uns fantásticos Specialized  novos nos pês. Rejubilai!


De volta à estrada


O resto do dia foi gasto em sair da mancha urbana do Porto, navegando por ciclovias e estradas concorridas, com muitas paragens para fotos, no porto de Leixões, na refinaria, e num largo etc. Sabia que a tarde não daria para muitos quilómetros, mas já haveria tempo para etapas maiores. Por hoje contentava-me em encontrar um parque de campismo fora da zona urbana e dormir longe do barulho das luzes, depois de um dia cheio.



Porto de Leixões



Isto ainda existe em 2021?


Home, sweet home


Bacalhau!


Também tive companhia para o jantar


Dia 8. Gaia-Vila Chã. 26km (Ciclovia/Estrada)

quinta-feira, 29 de abril de 2021

Projecto Bacalhau: Dia 7 - A Máfia de Gaia

Mais ciclovias de sonho!

A manhã começou cedo, mas não fui muito longe. Tinha que apanhar o ferry para São Jacinto, a Norte, para continuar a circular junto à costa. Dei com o sítio sem problemas, mas os intervalos do horário eram bastante espaçados, e tive de esperar quase duas horas pelo barco. Cheguei mesmo a duvidar se os ferries estavam em actividade, pois não se via ninguém, mas um telefonema rápido confirmou que tinha apenas que esperar. 


Tudo tranquilo no porto


Demasiado tranquilo...


Lá vem ele!


À espera dos últimos clientes


A zona de São Jacinto é lindíssima


Uma vez do outro lado, não podia deixar de reparar na beleza das paisagens e congratular-me com a minha escolha do percurso. Não conhecia a zona, mas dava vontade de explorar. A estrada (N327) era tranquila e fui apreciando as vistas magníficas enquanto me encaminhava para Norte pela estreita língua de terra entre a lagoa e o mar. O clima é que era decididamente mais fresco e já se notava agora que estava no "Norte".


Paragem para fotos. E almoço!

Parei no Furadouro, mais uma bonita terra com ciclovia, uma terra que eu não conhecia, e que parecia ter algum turismo em actividade. Após umas fotos junto ao mar, aproveitei para mais um almoço de luxo numa esplanada, mas desta vez estava decidido que não ia parar tão cedo, pretendia chegar pelo menos a Gaia. E sem dar tempo a acomodar-me, regressei à estrada. 


Querem melhor que isto?

Por vezes havia troços de ciclovia de grande qualidade, e eu aproveitava sempre para rolar por lá. Este caminho era um gosto e aproveitei o máximo que pude. As coisas começaram a mudar à medida que me ia aproximando de Gaia. Mais pessoas, mais trânsito, mais confusão. Em principio a zona do Porto seria a última grande cidade que visitaria em muito tempo, e tinha decidido passar por lá.   

Quanto mais me aproximava da urbe, pior era o trânsito, e a determinada altura passei para uma ciclovia ribeirinha. O meu GPS meteu-me em caminhos malucos, em passagens tão estreitas que tinha que parar para deixar passar peões. Mas o pior eram as ciclovias nos arredores de Gaia, cheias de gente, com cães, crianças pequenas em patins, e vendedores ambulantes com a sua mercadoria a ocupar toda a faixa.  

Toda esta gente e a súbita agitação e actividade estavam já a provocar-me não poucas comichões, pelo que quando vi um parque de campismo à beira da ciclovia disse para o Dentuça: é já aqui! As reviews do sítio eram bastante más, mas eu queria sair da confusão e pagar pouco pela dormida, e aquele parque parecia ser a solução. Quão mau poderia ser? Am I right?

Pois bastante, seria a resposta. O empregado na recepção estava muito surpreendido e atrapalhado com o facto de eu querer ali passar a noite e não parecia querer avançar com o registo. A ideia de que eu, com uma tenda, queria dormir num parque de campismo, aquele, parecia-lhe realmente estranha. Acabou por dizer que tinha que chamar o "patrão". Levou algum tempo, mas o patrão lá apareceu, um destes empreendedores modernos do Norte, cheio de e atitude, e que trata os empregados como se fosse um industrial do Séc. XIX.

 

A fazer amigos por todo o país


O patrão fez-me muitas preguntas, como se a autorização para a minha estadia dependesse das respostas, e por fim acabou por autorizar. Depois mostrou-me em pessoa exactamente onde é que eu podia montar a tenda, sendo que o parque estava practicamente vazio, mas ele é que decidia onde é que eu ia dormir. De notar que o valor da dormida era o dobro do habitual e o mais caro que paguei por um parque de campismo em toda a viagem (este parque foi também o pior, empatado com o de S. Martinho).  Enfim, pelo menos eu estava fora da confusão e tinha a companhia de um cachorrinho simpático para montar a tenda.

Estava tão cansado que depois da rotina de higiene e lavagens do costume não fui a lado nenhum e cozinhei o que me sobrava de comida mesmo ao lado da tenda, antes de adormecer ao som dos piões e atravesadelas dos aceleras da zona.  Toda uma experiência. 

Dia 7. Gafanha da Nazaré-Gaia. 64km (Estrada/Ciclovia)

quarta-feira, 28 de abril de 2021

Projecto Bacalhau: Dia 6 - Aveiro, ou quase

Para Norte!


A manhã começou com um excelente pequeno almoço no hotel, na companhia do proprietário. Falámos dos tempos difíceis para o turismo na zona, sendo que ele próprio só tinha o hotel aberto porque clientes conhecidos, empresariais, o tinham contactado. De resto, reservas, só a minha. Bem me tinha parecido que o hotel estava vazio. Já na rua, encontro muitos outros ciclistas, é manhã de fim de semana. Assim tenho companhia até a minha primeira paragem, um pequeno miradouro à saída da cidade.


Adeus Figueira, foi bom enquanto durou


A minha escolha de estradas revelou-se acertada. Havia mau piso, com certeza, mas sempre pouco trânsito e boas paisagens. A ideia era chegar a Aveiro, pela costa. Os caminho desertos, quase planos, eram uma maravilha. Ainda apanhei também troços de excelente ciclovia. O tempo estava bom, mas fresco o suficiente para ser confortável na bicicleta. Tudo de sonho portanto. E eu andava a sentir-me culpado por não ter feito mais quilómetros nos dias anteriores, por isso tentei redimir-me.



Estradas de sonho



Caminhos de sonho



Ciclovias de sonho

O almoço foi num parque de merendas à beira da estrada. Dei uso ao fogareiro e comi umas massas desidratadas. Não vou dizer que foi espetacular, mas não posso comer sempre na esplanada. Mais uns quilómetros e fui ter à Gafanha da Nazaré. Sabia que aqui havia um parque de campismo, e Aveiro era para o interior, fora de mão, pelo que decidi que este era o destino para hoje.

O parque estava aberto, mas apenas para os residentes habituais. Em muitos parques de campismo do país há uma comunidade de residentes semipermanentes, com tendas e atrelados já a fazerem raízes, e que funcionam como casas de férias. Em vários parques em que pernoitei, estes eram os únicos outros utilizadores. De tal forma que neste caso foi necessário uma séria de telefonemas para eu ser eventualmente autorizado a ficar.  Montei a minha tenda e fui tratar da rotina do costume. Para ir às compras ainda fiz uns quilómetros de bicicleta, prefiro andar ao fim do dia, para usar outros músculos e relaxar as pernas, mas não era muito longe.


O percurso total feito até à Gafanha da Nazaré

O dia acabou com um jantar na tenda e dormida cedo. Não fora a conversa ao pequeno almoço e o meu nível de interacções humanas continuaria abismal. Não sei bem como contornar a questão, a pandemia exige cuidados e por outro lado eu não sou o animal mais social que alguém já conheceu. Ainda assim, estou confortável com estar na minha própria companhia. Como sempre, a dormida é cedo, que a alvorada não tarda em chegar.

Dia 6. Figueira da Foz - Gafanha da Nazaré. 92km (Ciclovia/Estrada)

terça-feira, 27 de abril de 2021

Projecto Bacalhau: Dia 5 - Figueira da Foz!

Acho que não é por aqui...

A manhã do meu 5º dia começa... devagar. Ainda não me sinto muito energético, e a pele ainda está vermelha, ainda me dói quando visto a roupa, sequelas da primeira etapa. Felizmente o dia está mais fresco, e nublado. Levo mais tempo que o pretendido a desmanchar a tenda e arrumar tudo de volta na bicicleta. Pelo meio das arrumações quase deixo para trás o meu pequeno powerbank, que miraculosamente reapareceu na recepção do parque. 


São Pedro de Moel é fixe


O percurso começa na impecável ciclovia de São Pedro de Moel. Mas como qualquer outra coisa boa na vida, a ciclovia também não dura para sempre. Programei um caminho no GPS que procura manter-me sempre bem perto da costa, enquanto rumo a Norte. No mapa parecia tudo bem. Da ciclovia passo para a estrada, que vai ficando progressivamente mais estreita e de pior qualidade. Confiando nos meus pneus de gravel de 35mm, vou avançando sem muitas preocupações.


Piso degradado, mas nem um carro por perto

A estrada não tem ninguém, e eu gosto disso. Não fico alarmado quando o alcatrão fica tão estreito que um carro teria dificuldades em manter-se sempre nele. Depois começa a aparecer cada vez mais areia na estrada e não há sinais desta ter sido utilizada recentemente. Boa, por mim quanto mais remoto melhor, menos carros e melhores vistas. Venha a aventura!


Noutros tempos devia haver mais trânsito...


Infelizmente, umas centenas de metros mais à frente, a estrada que estava a seguir, confiando no GPS, acaba num portão fechado. O portão, velho, é parte da cerca de uma enorme zona industrial. Tudo à volta do perímetro cercado são dunas, areia e algum mato, até onde a visita alcança. Não há caminhos, trilhos ou estradas, excepto aquela de onde eu vim. Consulto o Google Maps no telemóvel e concluo que se andar um pouco para a direita, devo encontrar uma estrada principal. Não querendo voltar para trás, resigno-me a empurrar a bicicleta pela areia.  


Estradas, quem é que precisa disso?

E empurrar foi o que eu fiz. Mas a tal estrada nunca mais aparecia. Com os pés cheios de areia, persisti por dunas enormes e algum mato, até chegar a um single-track, que me levou até... uma linha de comboio! OK, aquilo era meio numa curva, mas achei que se viesse um comboio eu conseguiria ouvir a tempo de fazer alguma coisa. Pensamento positivo... Carreguei os vinte quilos de bicicleta por cima das vias e pouco depois estava numa nacional com transito razoável.  

A estrada era o caminho certo (N109), e começa a ter mais subidas à medida que me vou aproximando da Figueira da Foz. Não tardo a ter em vista a ponte que leva à cidade. Tenho que admitir aqui uma coisa: faz-me muita confusão passar em pontes grandes e altas de bicicleta. É como se desconfiasse que o vento me vai levar. E o raio da ponte não tem bermas nem ciclovia, só duas boas faixas rodoviárias com ar inóspito de autoestrada, com bermas super elevadas e sinalização grande. O português médio já acha que practicamente todas as vias são autoestradas, quanto mais se tiverem aspecto de o serem. Temo o pior.

 

Figueira da Foz!


Venço a minha fobia e não tarda estou longe do trânsito de alta velocidade da ponte. A cidade e as suas praias parecem desertas. Exploro a zona litoral, até que me entra a fome, e vou almoçar a uma esplanada que me pareceu barata. Não havia lá mais ninguém. Por esta altura já fiz um pouco mais de quilómetros que no dia anterior, mas ainda não me sinto a 100%. Resigno-me a ficar por ali e aproveito que estou sentado para fazer a reserva do hotel. 


Muita areia, pouca gente

Quase todos os hotéis estavam encerrados, mas arranjei um lugar simpático, não muito longe do casino da Figueira. Depois de uns dias na tenda, tudo aquilo me pareceu luxuoso. Uma casa de banho só para mim? O requinte! O luxo! A bicicleta fica a dormir numa sala de arrumos do restaurante no piso térreo, que está fechado. Eu aproveito as instalações para tratar do meu equipamento e de mim mesmo. Depois do banho, ponho mais carradas de creme para a pele. Descubro que a caminhada fora de estrada deixou os meus sapatos SPD com a sola a divorciar-se. Tento resolver o problema com cola de furos de camara de ar, mas não tenho muita fé nas minhas artes de sapateiro. Ponho também todos os aparelhos a carregar, telemóvel, powerbank, GPS, luzes. E claro, trato da lavagem da roupa.   


Ambiente simpático no Hotel


O Casino

Tratadas as tarefas domésticas, ainda falta mais uma, as compras. Está tudo a fechar cedo mas consigo comprar jantar a tempo. Regresso ao hotel, onde aproveito o WiFi para investigar percursos para os próximos dias e carregar o track no GPS. A cama é fenomenal e parece não haver mais ninguém no hotel. Tudo isso promete uma noite descansada, coisa que eu estou a precisar. 

Dia 5. São Pedro de Moel-Figueira da Foz. 62km (Ciclovia/Estrada)

segunda-feira, 26 de abril de 2021

Projecto Bacalhau: Dia 4 - Boa Vida

Final do dia em São Pedro de Moel


Uma última volta pela baía e despeço-me de São Martinho do Porto. Daqui para a frente o plano é seguir sempre para Norte. Já explorei estas paragens de bicicleta antes, mas depois de São Pedro de Moel tudo será novo para mim. Penso prosseguir pela costa, ou tão perto dela quanto possível, até à fronteira com a Galiza, ou não muito longe disso. A fronteira estará fechada, tanto quanto sei, e nessa altura rumarei a Oriente, ao Parque do Gerês, onde sempre me apeteceu ir explorar, mas nunca tive oportunidade.


Bonito. Mas não estou interessado


Mas tudo isto parecem planos para um futuro ainda longínquo, quase intangível. Esta manhã, o caminho até à Nazaré é a única coisa em que a minha mente se ocupa no momento. Isso e o pequeno almoço, já que arranquei sem o tomar.  O GPS voltou a falhar-me e andei um bocado desorientado durante a manhã. Encontrei a Nazaré algo vazia e tomei o pequeno almoço numa esplanada. Deixo-me ficar sentado mais tempo que o que devia, quebrando ritmo. Acho que estou cansado... Mas ainda agora arranquei!

Ciclovia de sonho!

O resto do caminho é magnífico. Plano e quase sempre por ciclovia. Valia a pena alguns responsáveis camarários virem aqui estudar como se faz uma ciclovia segura. Reparem na existência de rebordo de cimento que limita a ciclovia, antes de um espaço de terra, um canteiro com flores, que isola a ciclovia da estrada. Isto cria uma margem de segurança e desencoraja o estacionamento abusivo.  


Aerogeradores junto à costa


Neste ambiente protegido, posso descontrair e apreciar a paisagem. Mesmo na estrada há pouco trânsito e cruzo-me com dois ou três ciclistas na ciclovia, em todo o caminho. Nunca estamos muito longe da praia e sempre rodeados de arvoredo. O tempo está mais fresco, as minhas queimaduras agradecem. Avanço a ritmo lento, as pernas parecem pesadas hoje!


Se procurarem bem, está ali o Dentuça

A chegada a São Pedro de Moel não tarda, mesmo a tempo para almoçar. Dou uma volta para tirar fotografias e depois parto à procura de um restaurante de boa memória. Almoço refastelado na esplanada do restaurante, não recordo o que foi, mas havia boa batata frita caseira em abundância e isso é sempre de louvar. Deixo-me ficar longo tempo ali, acho que houve sobremesa e tudo. Tenho que admitir que estou sem energia. Só fiz 35km, mas depois de muitas semanas de confinamento, o corpo não estará habituado a tanta actividade. 


O parque de campismo aqui ao lado

Sendo que na terra existe um parque de campismo, resolvo ficar por aqui e reestabelecer forças. E dar tempo à minha pele para recuperar das queimaduras. Ainda me dói, e todos os dias me besunto com creme hidratante gordo. De notar que as minhas rotinas diárias são elas próprias algo exigentes, pelo menos para quem estava habituado a ficar fechado em casa a encher o bandulho. Todos os dias, depois de encontrado o sítio para dormir, tenho que tratar de várias coisas, sem falha:

  • Montar a Tenda. 
  • Arrumar sacos e material dentro da tenda.
  • Higiene pessoal. Cuidar da pele queimada.
  • Lavagem da roupa. Só tenho uns calções de ciclismo, que uso todos os dias. 
  • Secagem da roupa. Pelo menos os calções têm forçosamente que estar secos de manhã.
  • Localizar supermercado. Comprar comida para o Jantar e dia seguinte.


A vista do almoço era parecida


Tenda montada no parque de campismo quase deserto, em frente ao farol, regresso a chinelar pela ciclovia até ao supermercado da terra. Jantar comprado, reponho também o stock de álcool para o fogareiro, pagando cerca de 3€ por uma garrafinha pequena... coisas da pandemia. Janto sozinho na tenda, e com uma cerveja, como habitualmente, faço um brinde aos quilómetros que estão para vir. 


Home sweet home


Dia 4. São Martinho do Porto-São Pedro de Moel. 35km (Ciclovia)

domingo, 25 de abril de 2021

O Projecto Bacalhau

Mais uma para o GCN! Chupa!


Alguns de vós bem podem estar a interrogar-se: Mas que vem a ser isto, hem? Pois a verdade é que ressuscitei o Lisboa Bike, pela oportunidade de narrar, e ao mesmo tempo recordar, aquilo que foi a minha viagem por Portugal no Verão passado.

Assim, o Projecto Bacalhau é uma narrativa pessoal de uma volta a Portugal em bicicleta. A viagem durou várias semanas, em solitário, e em autonomia total, durante boa parte do mês de Junho de 2020, num período de aligeiramento de restricções, mas ainda sobre a pesada influência da epidemia de COVID19. A viagem foi feita em modo bikepacking, transportando o menos possível e sem um itinerário previamente definido.

Irei publicando a diário posts com os acontecimentos de cada dia de jornada, em sequência, e mais alguma outra posta, para esclarecimentos, como esta. A ideia é que isto depois possa ser lido de uma vez, se alguém o pretender fazer, mas que cada post também faça sentido por si só. Penso discutir alguns pormenores sobre a bicicleta e o equipamento que utilizei, mas no dia a dia o realce irá para as experiencias, as paisagens, e as motivações da viagem.

Como contado no primeiro capítulo da série, esta volta a Portugal foi uma resposta à impossibilidade de viajar internacionalmente na altura. Tinha grandes planos para 2020, mas o bicho aparentemente também. Esta viagem não foi o que tinha idealizado, mas de certa maneira, foi muito mais do que isso.

Projecto Bacalhau: Dia 3 - Rumo à Costa

Memórias de um passado próximo

O dia está mais fresco e nublado. É o terceiro da minha Volta a Portugal. A manhã começa num pequeno café em Fátima, não muito longe do Hotel, onde não havia pequeno almoço. E o pequeno almoço é muito importante quando uma pessoa se move à base da sua própria energia. Sentado observo a pequena comédia de enganos, enquanto os frequentadores do estabelecimento tentam negociar  as novas regras deste mundo pós-COVID. Alguns entram sem máscara, colocam a máscara quando estão sentados, mas imediatamente a retiram, pois com ela posta não conseguem beber a sua bica. Depois, só se lembram de voltar a colocar a máscara quando já pagaram e estão de volta à rua. A maioria são idosos e as empregadas vão lembrando as regras, mas também parecem não querer ofender os clientes.


No meio de sítio nenhum


O plano que estabeleci para hoje é basicamente chegar até ao mar, até a costa, em São Martinho do Porto. Uma belíssima localidade onde estive apenas uma vez, também de bicicleta, e tenho vontade de regressar. Não tenho track em GPS para seguir, pelo que tenho que arranjar um. A maneira de fazer isso é usar a ferramenta de criação de percursos da Bryton, acedendo através do telemóvel. Depois é sincronizar com o meu GPS da marca, o que apenas dá para fazer fora de casa se eu ligar o GPS ao telemóvel via Wifi Hotspot, pelo que para fazer isso preciso de ter boa rede. A sincronização por Bluetooth não funciona. Não é tão boa solução como usar o Komoot, que também tenho, mas o meu GPS não é compatível. Ainda assim este sistema permite manter uma certa flexibilidade de decidir o percurso, dia-a-dia. 


Há uma relação amor-ódio com este bicho

As minhas queimaduras ainda incomodam um bocado e após alguns quilómetros a minha pele tem um aspecto estranho, uma mistura da vermelhidão da queimadura, com creme hidratante, mais suor e pó da estrada. Talvez fosse disto que os Romanos faziam a sua misteriosa argamassa. Tento não pensar muito no assunto, até porque tenho mais coisas com que me preocupar. Os travões de disco estão a fazer uma chinfrineira desgraçada e nada os convence a calarem-se. Já limpei as pastilhas e os discos, o melhor que pude, sem efeito. Começo a pensar que talvez isso seja sério e afecte a travagem, pois vou passar por estradas de montanha na Serra D'Aire e não quero surpresas. 


Isso está bonito está!


Em Fátima ponderei comprar alguma camisola de manga comprida, mesmo que fosse uma coisa muito simples e não de desporto, para proteger os meus braços do Sol, já que rolar depois do meio-dia torna-se doloroso. Tenho uma jersey de manga comprida, mas acaba por ser muito quente. A solução para proteger os meus braços queimados mas continuar a pedalar ao Sol acabou por ser vestir o impermeável. É fino e o aumento da transpiração que traz o seu uso é suportável. Acabo por preferir isso à sensação de ter os braços a arder! 


Surpresas acabei por não ter, além de umas vibrações mais fortes em travagem, e de ter apanhado mais trânsito que o esperado, inclusive muitos camiões na serra. Pelo caminho lavei a bicicleta numa lavagem para carros, que a libertou do pó dos caminhos de Fátima e levantou a moral da expedição. Entre curva e contra curva, sobe e desce constante, estive na Batalha e em Aljubarrota,  o que trouxe consigo memórias de outras aventuras, de outro tipo, de um passado recente. Mas o caminho é, como sempre, para a frente. E ao fim do dia dei por mim na estrada para São Martinho do Porto, com o mar à vista ao fundo, e com um Parque de Campismo ali à mão. 


Vista em Aljubarrota


A inevitável foto com a padeira



Sombra agradece-se



Monumento a Humberto Delgado



Acho que é aqui...


Este estava fechado


O parque de campismo dos arredores tinha boa pinta, mas estava fechado. Nada de inesperado, na actual conjuntura. Eu sabia que havia outro parque mesmo ao pé da praia, por isso rumei ao centro, confiante de que finalmente iria dar uso à minha minúscula tenda. Assim foi, o parque de campismo era horroroso, mais parecia um descampado, ou mesmo um parque de estacionamento, e tinha zero serviços , tal como tinha zero árvores e zero bancos, mas estava aberto e tinha espaço. Estava demasiado cansado para procurar alternativas. E estando ao lado do mar, a vista não era má de todo. 


A praia não tinha muita gente


São Martinho do Porto continuava absolutamente divinal. Teria sido um final de dia apropriado jantar um peixinho, num restaurante acolhedor junto à baia. Afinal, os 250km em três dias mereciam ser comemorados.  Contemplei a hipótese com um sorriso. Mas sozinho e mal vestido, depressa perdi a vontade. Limitações deste tipo de viagem. Acabou por ser outra vez supermercado e jantar feito no fogareiro, no parque de campismo. Pouco depois do pôr do Sol estava a dormir, pois ainda tinha muitos km pela frente.


Casa, por umas horas


Dia 3.
Fátima-São Martinho do Porto. 75km (Estrada)