sexta-feira, 23 de abril de 2021

Projecto Bacalhau: Dia 1 - Dar o Máximo

Todas as viagens começam ao sair de casa

Amanhece no Isaltinistão, e eu já estou vestido. Tenho os meus calções novos da Assos, que custaram a quem mos ofereceu um rim e meio, e a minha jersey favorita, barata, discreta, mas super confortável e com um rebordo laranja nas mangas e no pescoço; os meus óculos de Sol, que na minha imaginação me dão um ar extremamente "pro"; o meu capacete preto do Decathlon, pois o orçamento não esticava para mais. Os meus fieis sapatos Shimano completam a indumentária, uns velhos SPD de montanha, com as típicas 3 tiras de velcro, companheiros de tantas aventuras, estão prontos para mais uma.  

Sentado na penumbra, vejo como a sala vai clareando à minha volta, os contornos da minha bicicleta de Gravel, carregada de sacos, ficando progressivamente mais nítidos com o lento avançar do tempo. Não sei bem do que estou à espera. A minha desculpa, a mesma dos últimos dias, é que aguardo a chegada de uma encomenda, que tarda em aparecer. Trata-se de um suporte para telemóvel, para que possa utilizar o aparelho em andamento, para navegação, já que o meu velho GPS de bicicleta não tem mapas e as suas ferramentas de navegação são do mais rudimentar que existe. 

A manhã de início de junho de 2020 não traz nuvens e começa a aquecer. A hora de chegada do carteiro chega e depois passa, mas nada é entregue. Pondero esperar mais um dia. Se for sincero comigo mesmo, tenho que concluir que não necessito assim tanto do tal suporte. Se a navegação estiver difícil, posso perfeitamente parar e consultar o telemóvel. Afinal, já fiz viagens assim antes. 

Mas não como esta. Pois o meu plano para esta manhã é dar início a uma volta a Portugal, em completa autonomia, que me levará aos 4 cantos do país, ainda mergulhado nos efeitos da pandemia de COVID19. No início do ano entreguei a minha demissão, após ter visto uma licença sem vencimento rejeitada, com a ideia romântica de tirar uns meses para viajar. Na semana em que fiquei livre do trabalho, foram anunciadas as primeiras medidas de confinamento, e dei por mim sem rendimentos e fechado em casa, impossibilitado de viajar. O meu timing sempre foi excelente!  

O Sol agora brilha forte, lá fora. Dou por mim a olhar para o Dentuça, o meu habitual companheiro nestas andanças. "O que é que estamos a fazer?" Parece ser a pergunta. Talvez por ser um mamute de peluche, o Dentuça não responde. Mas eu posso imaginar o que ele está a pensar. "Estás à espera de quê!? Vamos embora!" Todas as minhas angustias existenciais, a sensação crescente de ter atirado a minha vida pela janela, para ficar trancado sozinho numa velha casa do Isaltinistão, se convertem, num momento, numa só palavra. Medo. Tenho medo. E isso não é maneira de viver.
  

Sinalização ao longo do caminho

Minutos depois estou a rolar a bom ritmo na ciclovia à beira Tejo. O Sol brilha, glorioso. A sensação do vento na cara, a visão da minha bicicleta carregada, as pernas cheias de energia. Isto está mesmo a acontecer! São agora quase onze horas e tenho de recuperar o tempo perdido. A travessia de Lisboa decorre sem incidentes, sempre a grande velocidade. Chego ao Trancão e entro no Caminho do Tejo, daqui em diante seguirei um velho track .GPX de BTT, para chegar a Fátima. O destino de hoje é dormida em Olhos D'Água, mas tudo está em aberto. Não fiz reservas, não há planos definitivos, tudo é possível. 

O ritmo é alucinante, para mim pelo menos. Estou preocupado com a hora de chegada, não quero montar a tenda no escuro. O Sol brilha forte e o dia fica muito quente depois da hora do almoço. Eu tento manter-me hidratado e vou comendo qualquer coisa cada hora, mas não paro. Varias vezes o GPS revela as suas fraquezas e perco imenso tempo em demasiadas ocasiões. Em Alverca, por exemplo, preciso de cerca de meia hora para reencontrar o caminho, um trilho single track escondido por ervas altas atrás de um parque de estacionamento. 


O aspecto após 80km

Avanço pelos estradões de terra paralelos á linha do Norte da CP levantando uma nuvem de poeira atrás de mim. O caminho não é dos mais cénicos, e por vezes tenho que passar por portões e zonas em obras. a determinada altura o estradão desaparece e uns trabalhadores da CP recomendam que utilize a ponte da via férrea, pois o estradão recomeça do outro lado de uma vala. Assim faço, sem pensar muito no assunto, mas só quando vejo o Alfa Pendular passar, minutos depois, é que reparo que não havia espaço para ele e para mim naquela ponte. Mais à frente, paro na sombra de mais um viaduto ferroviário, para beber água. Ouço umas pedras mexer, e isso surpreende-me, pois são de tamanho significativo. As pedras afastam-se e revelam uma cobra, de tamanho que não sabia existir no nosso país. Se calhar é altura de ir andando. Adiante, que se faz tarde.  


Cidades! Quem precisa delas? 

Chego a Santarém, depois de uma subida que colocou à prova a minha forma física. Já a tinha feito, mas não recordava que fosse tão difícil. Tanta gente, é uma mudança de cenário quase inesperada. Mas os quilómetros deixados para trás dão-me confiança para os que ainda estão para vir. De tal forma, que resolvo recompensar-me com uma paragem para almoço, no McDonald's local (a minha desculpa é que ficava mesmo no percurso). São cinco da tarde e o Sol brilha como nunca.

Os quilómetros seguintes envolvem algum BTT puro e duro, que a minha bicicleta de Gravel de pneu de 35mm tem dificuldades a enfrentar. Pedras soltas, do tamanho de punhos, ameaçam a integridade das minhas rodas. Tenho ferramentas e peças para muita coisa, mas se der cabo das rodas não tenho plano "B". Faço vários troços cabeludos com o coração nas mãos, mas sempre que regresso à estrada inteiro lembro-me das saudades que tinha de um bom BTT. Está a ser um dia em cheio!  

As sombras são agora longas e ainda não tenho onde montar a tenda. Não há alternativa a não ser continuar a avançar. Estou surpreendido com o ritmo que consigo manter depois de tantas horas. Ainda tenho pernas para um sprint a evitar um canídeo psicopata, e para alguma subida inesperada. Mas sei que não posso aguentar muito mais. Não tinha que preocupar-me, as minhas contas batiam certo e antes do pôr do Sol, dou por mim a rolar pelo aprazível parque de Olhos D'Água, onde se encontra o desejado Parque de Campismo.


Chegada!

Já dormi em sítios piores

Say what?!

Mas o dia não chegaria ao fim sem mais um pouco de "aventura". O Parque de Campismo está fechado. O único sítio aberto era um café, onde a senhora que lá trabalhava me preparou uma saborosa bifana, pois nada mais havia para comer. Como vinha imaginando nos últimos quilómetros, brindo ao meu sucesso do dia. E indago sobre a possibilidade de acampar nas zonas verdes à volta do parque. Não falta espaço, e eu realmente posso dispensar os serviços do parque, tenho tudo comigo. A senhora do café desaconselha, pois existe um guarda que faz rondas de noite. O melhor é ter autorização da câmara local, o guarda não vai autorizar nada de sua iniciativa. Mas, claro, a câmara está fechada, são cerca das oito da noite e já não estará lá ninguém. Não posso deixar de sorrir. A situação é caricata. No meu primeiro dia na estrada, depois muitas horas a correr contra o tempo, depois de um esforço considerável para aqui chegar, parece que não vou ter onde dormir. 


Sem abrigo em Olhos D'Água

Dia 1. Oeiras-Olhos D'Água. 140,10km (BTT/Ciclovia/Estradão/Estrada) 

2 comentários:

  1. Muy valiente la excursión, desde luego tienes un ángel de la guarda!

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  2. Hombre, supongo que para todo hay que tener un poco de suerte : )

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