sexta-feira, 30 de abril de 2021

Projecto Bacalhau: Dia 8 - O Brilho da Invicta

O Porto a dar o máximo. Como habitualmente

É o oitavo dia da expedição e o Dentuça e eu acordamos no Parque de Campismo da máfia local, tendo concluído que este espaço só pode ser parte de algum engenhoso esquema de lavagem de dinheiro. O empregado desconfiado da recepção do dia de ontem tinha acabado por confessar que era o seu primeiro dia naquele trabalho, e por isso estava algo hesitante, mas nós não nos deixamos enganar. O que aqui se passa é claramente coisa do crime organizado!

Cometo o erro de não abandonar o lugar tão depressa quanto possível, e uma vez que ali havia uma pastelaria, resolvi que o melhor era sair já com o pequeno almoço tomado. A pastelaria parecia ser aliás mais importante que o próprio parque, já que era ampla e servia as muitas pessoas que passeavam à beira mar. Poder-se-ia mesmo dizer que se tratava de uma pastelaria com parque de campismo, e não ao contrário. 

Mas ainda antes de conseguir comer alguma coisa, já estava a ser repreendido sem contemplações, por ter encostado a bicicleta a uma parede, onde não estorvava ninguém. Fui então obrigado a deixar a bicicleta já carregada num daqueles estacionamentos entorta-rodas, longe da vista. Achei que não valia a pena perder muito mais tempo por ali, e fui devolver o meu cartão do parque, mas não havendo ninguém na recepção, tentei entrega-lo na pastelaria. Uma senhora disse que sim, podia ficar com o cartão, mas deixou logo bem claro que não me podia deixar sair, já que não tinha confirmação de que eu tinha pago. (Eu tinha, na tarde anterior). Eu disse que aguardaria que ela confirmasse e ela disse que eu teria mesmo que esperar pelo patrão, que ela não sabia onde se encontrava nem quando viria.

Nesta altura tive que tapar a boca ao dentuça, e controlei-me eu próprio para não lhe dizer onde é que ela podia por o cartão e mais o patrão e as regras da casa. Acabei por sair sem voltar a ver o capo da cosa nostra local, mas desconfio que ele deve ter autorizado a minha saída pelo telefone, porque ninguém veio a correr atrás de mim, quando montei na bicicleta e rumei ao Porto.


    Baby needs a new pair of shoes


Tinha que me organizar. Hoje tinha coisas para fazer! Depois de uma semana a vagabundear pelo país, sem grandes pressas ou obrigações, hoje tinha planos para concretizar. Primeiro na lista estava comprar uns sapatos. As exigentes caminhadas dos últimos dias tinham deixado os meus históricos Shimano em muito mau estado, e eu já não acreditava que resistissem ao resto da viagem, pelo que queria aproveitar que estava numa grande cidade para trocar de sapatos. 


O Douro pela manhã

Não tive grande sucesso nas lojas de bicicletas dos arredores de Gaia e resolvi ir para o Porto. A ideia era seguir sempre pela costa, primeiro, e depois pela margem do Douro, até à ponte D. Luís. De notar que, embora aqui tenha passado muito pouco tempo da minha vida, eu nasci em Gaia, e tenho muito boas recordações do Porto, pelo que aquela manhã tinha um sabor muito especial.


Ah, o Porto...

E foi assim que fiz toda a excelente ciclovia até à marina do Douro e passei para a estrada, na Afurada. O caminho serpenteava junto ao rio, passando também por velhos armazéns e palacetes. Vi barcos rabelos a serem reparados (construídos?), turistas a passear e a silhueta familiar do Porto a ser progressivamente revelada, na outra margem. Havia uma luz incrível junto ao Douro naquela manhã e, por alguma razão, nenhum carro na estrada. Abrandei o ritmo, pois sabia que dentro de nada estaria na ponte D. Luís. Queria apreciar o momento. A luz, a vista, a estrada vazia, o som da corrente a deslizar nos carretos da bicicleta, que me tinha trazido até ali, ecoava pela rua. Parecia tudo tão... Perfeito. Naquele instante, não precisava de absolutamente mais nada. Já tive outros momentos assim, mas não muitos.

  

Não havia miudagem a saltar para a água


Atravessando para o outro lado, esta tranquilidade foi logo substituída pela agitação da cidade invicta. E a determinada altura tive que me afastar do rio, já que tinha que tratar da segunda coisa na minha lista do dia: o almoço com a ex. Efectivamente: tinha combinado almoçar com uma amiga que em tempos tinha sido muito mais do que isso, e com quem eu não tinha um programa de qualquer tipo há mais de dois anos. O constrangimento estava no ar, mas eu queria mesmo vê-la, saber dela, e normalizar o contacto, se possível.

Além de tudo, era a minha primeira interacção social de algum relevo desde que iniciara a viagem e confesso que estava nervoso. O Dentuça mal podia conter conter o riso, enquanto eu me atrapalhava a subir as escadas do prédio onde tinha estado inúmeras vezes. Uma pesada porta corta fogo, de mola automática, chegou mesmo a acertar em cheio no quadro da bicicleta e acho que falhei um batimento cardíaco ou dois. Mas não houve estrago. 

O almoço decorreu num ambiente a que eu, naquele contexto, não estava habituado. Falámos de coisas sérias, de família, de responsabilidades, de preocupações. Além disso, ela estava na pausa do almoço e tinha coisas para fazer, horário a cumprir. E ali estava eu, a disfrutar da companhia, e do almoço que me era oferecido, sem pressas, sem horários, e sem uma preocupação no mundo. 


Simples, mas mesmo o que estava à procura


Vim-me embora a sentir-me profundamente privilegiado por ter esta oportunidade na minha vida e mais decidido ainda a viver a minha volta a Portugal com a intensidade e dedicação que a ocasião merecia. Recebi ainda uma valiosa dica para uma loja de bicicletas ali ao lado, que talvez tivesse sapatos para mim. E assim era, tive que esperar que a loja abrisse, mas logo depois, em poucos minutos estava de volta à estrada, com uns fantásticos Specialized  novos nos pês. Rejubilai!


De volta à estrada


O resto do dia foi gasto em sair da mancha urbana do Porto, navegando por ciclovias e estradas concorridas, com muitas paragens para fotos, no porto de Leixões, na refinaria, e num largo etc. Sabia que a tarde não daria para muitos quilómetros, mas já haveria tempo para etapas maiores. Por hoje contentava-me em encontrar um parque de campismo fora da zona urbana e dormir longe do barulho das luzes, depois de um dia cheio.



Porto de Leixões



Isto ainda existe em 2021?


Home, sweet home


Bacalhau!


Também tive companhia para o jantar


Dia 8. Gaia-Vila Chã. 26km (Ciclovia/Estrada)

2 comentários:

  1. Bessa, que grande aventura! Eu sou mais um daqueles "invejosos" que jamais teria coragem (ou pernas) para levar a cabo a empreitada. Mas leio os teus textos com muito gosto e uma certa admiração, o que testemunha a qualidade da tua escrita, bem enxuta.
    Obrigado por te dares ao trabalho (eu sei que dá trabalho) de publicar aqui as crónicas desses teus dias.
    E parabéns pela aventura!
    Abraço,
    Vasco

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  2. Olá Vasco! Obrigado pelas palavras simpáticas. Queria partilhar estas andanças esperando ajudar alguém que ande a pensar fazer o mesmo. E é sempre bom reviver! Abraço

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