sábado, 15 de maio de 2021

Projecto Bacalhau: Dia 23 - Até ao Fim

Almada. O Isaltinistão ali tão perto

A manhã do último dia começa em algumas das estradas onde eu mais evitaria pedalar em Portugal. As nacionais ao redor de Sines. Sem bermas, sempre com trânsito relativamente denso e rápido, e com malta que ultrapassa as bicicletas de qualquer maneira. Um TIR passou a milímetros do meu guiador e o Dentuça chamou-lhe nomes que eu nem sabia existirem. Este percurso foi tanto mais inglório porque eu fui mesmo obrigado a voltar para trás. Eu explico: há poucos anos algum iluminado resolveu caçar uns votos "inaugurando" uma autoestrada nesta zona, ou melhor, mudando o nome à antiga estrada de duas faixas por sentido que vinha para Sines, e com a alteração, para sempre banindo os velocípedes de ali circularem.

 

Por aqui?


Embora tudo indicasse o contrário, eu estava convencido que existiria um caminho para Norte para bicicletas, passando por Sines, mas evitando a dita A26, e o GPS, por uma vez, concordava comigo. O que eu não contava era com o que seria preciso para sair dali sem usar a dita nova "autoestrada". Para o GPS um caminho é um caminho. Mas eu é que tenho que lá passar!


Por aqui??


Primeiro tive de usar uns acessos a um estacionamento, depois tive de contornar por trilhos a refinaria e os depósitos de hidrocarbonetos de Sines. Mais tarde andei mesmo no meio do mato, usei umas estradas de acesso para trabalhadores da refinaria e depois de circular numa linha férrea encerrada, lá encontrei uma saída para uma estrada nacional que seguia para Norte. 


Por aqui!


Quando finalmente vi a zona de Sines pelas costas, realmente tinha evitado a autoestrada, mas era quase hora de almoço e o calor apertava. Tinha os pulsos em mau estado, devido ao piso e o terreno que tinha atravessado, e estava a ficar claro que não haveria pausa para almoço, não se eu queria estar em casa, no Isaltinistão, antes de escurecer.


Hum...


Cheguei sem muitos incidentes a Troia, mas sempre debaixo de imenso calor. O trânsito cada vez mais intenso e os condutores que desprezam a vida dos outros vão tirando alguma piada a circular por estas bandas. Nesta altura ainda faltavam duas travessias de ferry e mais de 40Km para eu chegar a casa, mas eu sentia que era já mesmo ali ao lado.


No Ferry



Pronta para os últimos Km


Não era. No Ferry para Setúbal vimos golfinhos e a criançada a bordo correu para ver os simpáticos animais, que pareciam saudar a nossa passagem. Foi um momento de serenidade, que não me preparou para o que viria a seguir. A subida à saída de Setúbal fui brutal. Pouco depois encontrava um trânsito absolutamente infernal entre Setúbal e Almada, em hora de ponta e debaixo de um calor abrasador. Filas e filas de transito caótico, os paquidermes metálicos enfurecidos, que eu contornava e deixava para trás, apesar do cansaço dos mais de cem quilómetros nas pernas.


De maneiras que foi isto

Suponho que não poderia ser de outra maneira, haveria esforço até ao fim. Em Almada tive de correr para o barco. Uns minutos depois estávamos a ser libertados na outra margem, no Cais do Sodré. O Dentuça exclamou um sentido "I'm back, bitches!" mas a euforia durou-lhe pouco. A rolar lentamente numa Marginal repleta de carros, uma certa melancolia pareceu instalar-se. Parecia incrível estar de volta, mas era verdade, ali estávamos nós, 23 dias e 1900Km depois, practicamente de volta ao ponto de partida. No ar andava uma pergunta, pesada, inevitável, incontornável. "E agora?"

Para libertar a mente destas questões fracturantes, comecei a assobiar o tema de Lucky Luke, como tinha feito em tantos outros finais de dia, nas semanas anteriores. Depressa o Dentuça me acompanhou e juntos cantarolamos pela estrada fora, enquanto mergulhávamos cada vez mais no caos do fim do dia do Isaltinistão. 



Km finais: 1909


Obrigado a todos os que seguiram esta pequena saga desde o início, espero ter motivado alguém a fazer uma viagem mais longa de bicicleta ou ajudado a esclarecer o que acontece, ou pode acontecer, num tour deste género. Estarei disponível nos comentários para questões que surjam. 

Espero também encontrar alguns de vós na estrada. O tempo está excelente. Boas pedaladas!

Dia 23. Porto Covo-Isaltinistão. 153Km. (Estrada/Trilhos)

6 comentários:

  1. Obrigadão pelas partilhas!! Encontramo-nos na estrada daqui a pouquinho! :)
    Essa reação ao barulho, trânsito, confusão... na entrada nas cidades lembra-me o regresso a Dili depois de uns dias nos "distritos". Incrível o contraste com a paz de zonas e estradas mais tranquilas... que não sentimos facilmente no dia a dia quando imersos na confusão. Uma boa metáfora para vida, entre muitas outras que se podem formular!!
    Força aí - há para aí muitas mais viagens para serem descobertas, literal e figuradamente!!

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    1. Obrigado! O que mais impressiona é dar conta que de facto estamos super acelerados e a viver na confusão no dia-a-dia, sem dar conta. Habituamo-nos a tudo!

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  2. Gostei muito de ler a aventura e finalmente percebi no que consistiu e o porquê de te aborreceres com os meus comentários durante a mesma. E agora? Só para relembrar que as fronteiras já estão abertas e eu tenho algum tempo para ler :)

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  3. Ainda bem que gostaste! Eu de momento ando a estudar várias possibilidades : )

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  4. Bessa,
    Belíssima e inspiradora jornada. Li-a em dois capítulos, para saborear melhor.
    Obrigado pelas crónicas, fiquei com vontade de conhecer o teu amigo Dentuças :-) Parece ser um gajo porreiro, como tu.
    E parabéns, uma vez mais, pelo objectivo alcançado.

    Abraço,
    Vasco

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  5. Olá Vasco! E obrigado! O Dentuça e eu andamos a pensar em outras aventuras, espero ter alguma novidade em breve. Entretanto tenho saudades da minha Vespa vermelha : ) Grande abraço. Bessa

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