quarta-feira, 30 de junho de 2021

No País dos Rodinhas Tudo Corre Sobre Rodas

DR


Não costumo falar destas coisas, mas esta situação é demasiado triste e acontece demasiado perto de casa, literalmente. Para mais, acabado de regressar de uma viagem pelo país vizinho, que penso trazer em breve a estas páginas, há realidades que saltam à vista e têm que ser mencionadas.

Em primeiro lugar, as minhas sentidas condolências e uma palavra de apoio para os familiares e amigos da Patrizia Paradiso, a ciclista abalroada por um automobilista na Marginal no fim de semana passado. Quando falamos destas coisas, é fácil passar rapidamente para as questões prácticas, técnicas e até morais da discussão. Nunca será demais lembrar que se extinguiu uma vida, ou duas neste caso, já que a Patrizia se encontrava grávida. Talvez por isso, e por se tratar de uma jovem académica, e uma pessoa que parecia ter muito para contribuir para a sociedade, tem havido um maior interesse mediático neste caso. Pensem na tragédia que este acidente significa, para os familiares, os colegas, os amigos da Patrizia. O impacto que terá nas próximas semanas, meses e anos das suas vidas.

E no entanto, lendo sobre o assunto, e sobre a temática em geral, somos imediatamente recordados que como estas coisas são tratadas em Portugal. É como se existissem uma série de consensos à priori, que moldam invariavelmente a discussão. Quem ler como a comunicação social aborda estes temas, encontra sempre dois elementos em comum:

  • Uma vontade irresistível de culpar a vítima. Ou pelo menos os ciclistas em geral. Porque "eles" saltam vermelhos, não usam luzes, não usam coletes reflectores, não circulam suficientemente encostados à berma, etc. (No fundo, porque existem).
  • A mesma vontade de desculpar o automobilista. Porque a estrada era estreita. Porque havia má visibilidade. Porque a diferença de velocidade era muito grande. Porque as condições climatéricas eram más, etc. (No fundo, porque não têm culpa que "eles" existam).

Os próprios ciclistas, que, recordemos, são na maioria das vezes também automobilistas, se dividem. Por exemplo, os apologistas da obrigatoriedade do uso do capacete parecem sentir um alívio intenso, se souberem que a vítima em causa não levava capacete. Assim podem viver na ilusão de estarem eles próprios completamente seguros, sempre que saem para a estrada com um pedaço de esferovite na cabeça. 

Há um par de semanas eu cruzei uma obscura fronteira no Alentejo e entrei na Extremadura Espanhola. Imediatamente me senti brindado por uma tremenda "cortesia" por parte dos automobilistas locais. A distância lateral que 95% deles me davam durante as ultrapassagens era, parecia-me, gigantesca. Um luxo, pensava eu. Toda a viagem me senti incrivelmente seguro, mesmo que não se visse nem mais um ciclista por aquelas paragens. Em Portugal, mesmo em zonas onde os ciclistas são presença habitual, as razias ao meu guiador são um acontecimento frequente. Ninguém é penalizado, e os automobilistas parecem desfrutar de "apertar" com o ciclista. 


A sinalética não abunda por cá, mas as regras são as mesmas


Passados um dias, e pensado sobre o assunto, constatei o obvio. Aqueles automobilistas, de uma das zonas mais pobres e de menor nível educativo do país vizinho, note-se, estavam apenas a cumprir a lei. Sim, porque a lei exige que se abrande e se guarde pelo menos 1,5 metros de distância lateral ao ultrapassar um velocípede. Idéntica legislação existe em Portugal. Mas os portugueses ignoram ou desprezam o código da estrada, e as autoridades não se interessam minimamente por garantir o seu cumprimento. 

Eu passo com alguma frequência no local do acidente da Patrizia, pois vivo muito perto. O limite de velocidade são 50Km/h. Não sendo ideal, e tendo bastante trânsito, não considero a estrada em si perigosa, afinal é plana, com bom piso e boa visibilidade. Sim, as faixas de rodagem são estreitas, como acontece em toda a N6, mas há duas para cada sentido. Por isso mesmo, os automobilistas deveriam mudar de faixa para realizar a ultrapassagem a um ciclista. O código da estrada a isso obriga. Mas o facto é que a maioria das pessoas da zona não se dá a esse trabalho. Menos ainda abrandam. Perderiam um par de segundos e não estão para isso. Muitos circulam em excesso de velocidade. Não poucos limitam-se a poupar a vida do ciclista no último momento, passando a uns míseros centímetros do guiador. 

É tão simples quanto isto: o condutor que atropelou a Patrizia é objectivamente um homicida negligente, era sua obrigação garantir que podia parar em segurança se algum obstáculo lhe surgisse na faixa de rodagem, e devia igualmente garantir que no caso de uma ultrapassagem, esta seria efectuada a baixa velocidade e garantindo uma distância mínima lateral de 1,5 metros do velocípede. Tal não aconteceu, e agora ele é responsável por uma tragédia. Pouco há para discutir neste caso. Como é obvio, este condutor deveria estar neste momento detido, aguardando uma investigação, mas duvido muito que seja o caso. 

Duvido mesmo, por experiência, que este homem venha a ser punido de alguma forma concreta ou sequer simbólica. E é esta ausência de qualquer castigo, qualquer responsabilização, tão portuguesa por sinal, que garante que continuarão a existir estes casos. Porque no fundo basta dizer "não vi" ou "aconteceu tudo muito rápido" e os culpados vão para casa, deixando um rasto de morte e destruição atrás de si. Não é falta de legislação, não é falta de ciclovias segregadas, é a actitude irresponsável de uma enorme fatia da população, que inclui a elite política e o poder judicial, para quem mobilidade é igual a automóvel e para quem as bicicletas são uns brinquedos incómodos, que devem simplesmente sair do caminho, como por magia, quando o veículo dos adultos se aproxima.

 


Pouco mudou. Este é uma país de rodinhas, onde as pessoas persistem em ir a todo o lado de automóvel, e consideram ter uma espécie de direito divino de nunca abrandar e ter lugar de estacionamento garantido a 10 metros do destino. Demasiados cidadãos olham para o mundo a partir desta visão provinciana do novo rico que adora o seu brinquedo mais caro. Um país onde por sistema se ignoram os limites de velocidade, impunemente. Onde diariamente se estaciona de qualquer maneira, em cima de passadeiras, de passeios, bloqueando a passagem em ciclovias, sem consequências. Onde uma enorme fatia da população não sabe, não conhece, não concebe outra forma de deslocar-se que não seja recorrendo ao automóvel. Assim é muito difícil ter uma discussão construtiva. O nível de ignorância em relação à temática dos modos suaves é demasiado grande. 

Num país de analfabrutos, patos bravos, rufiões e chicos-espertos, andar de bicicleta na via pública é de facto arriscado. Mas não será por culpa da legislação, nem sequer da infraestructura, (embora muito se possa fazer neste capítulo) e muito menos dos ciclistas.

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