terça-feira, 13 de julho de 2021

Projecto Caramelos: Dia 1 - O Homem da Marreta

Caramelos?


As coisas começaram de forma bem inocente, como quase sempre acontece. Tinha feito planos para acompanhar um amigo na sua deslocação de bicicleta ao seu lar ancestral do Alentejo. Éramos 3 ao todo, em bicicletas de estrada, e o plano era fazer a distância, cerca de 200 redondos quilómetros, num só dia. Por responsabilidades e coisas da vida, o meu amigo acabou por fazer a viagem de carro, em data inadequada para os restantes, mas eu estava decidido a ir de qualquer forma. 

E depois, já que ali estava, imaginei que seria fantástico aproveitar a proximidade à fronteira para dar um "saltinho" a Madrid e visitar mais uns amigos por lá. Afinal, no mapa eram apenas mais 400Km a solo, depois de ultrapassado o obstáculo do primeiro dia. Tinha planeado uma semana na estrada ao todo, e cerca de 700 quilómetros de caminho. Preparei o equipamento do costume, de onde apenas havia a destacar uns pneus ligeiramente mais estreitos e mais lisos, uns GravelKing de 32mm, montados como sempre Tubeless.

 

"Isso é tudo muito giro, mas aqui há AC!"

Para a longa primeira etapa, sendo que teria companhia, e carro de apoio, iria mais leve, sem os meus sacos, para mais facilmente fazer as tais cerca de duas centenas de quilómetros a um ritmo decente. No carro seguia também o Dentuça, talvez achando que já me aturaria o suficiente na semana que estava para vir. Ou talvez preferindo a companhia das "babes", como ele diria. Conhecendo quem lá estava, não sei se ele se safou com o estilo abusado do costume. Aliás, até hoje não sei bem como lhe foi o dia, a verdade é que ninguém está a falar. 


A caminho do Montijo


Arrancando de casa num Sábado de manhã, a horas pouco recomendáveis, e apanhando o barco das 08:00 para o Montijo, tudo corria sobre rodas, não fosse o habitual comportamento cavernícola de muitos automobilistas da margem Sul, que parecem ter recentemente perdido a namorada para um ciclista. Ou talvez um ciclista lhes tenha roubado o bilhete vencedor do Euromilhões. Não sei. Não consigo explicar de outra maneira o nível de agressividade e ignorância de alguns condutores da zona. Alguns faziam mesmo questão de abrandar, num coro de buzinadelas, para nos "informarem" de que não podíamos circular a par ou que estávamos obrigados a rolar na "ciclovia" de 25m, cheia de carros e lixo, que o cacique local tinha construído com o apoio técnico de um fulano que, certa vez, viu uma bicicleta.


Mais de 100Km, e ainda há sorrisos


Almoço!

O ritmo era sempre alto, pelo menos para mim, mas eu rolava protegido na roda do meu amigo João, onde passei aliás 99% do dia. O percurso era bem a Norte da Nacional 4, onde eu tenho alguma experiência, e que por isso mesmo decidimos evitar, passando por Mora, onde nos cruzamos com inúmeras motos. Era o Lés-a-Lés deste ano! Na paragem para almoço, em Pavia, mais de 100Km feitos, tudo ia bem. E aquela bifana soube divinamente. O pior ainda estava para vir.


Sem sacos de bikepacking é mais fácil!


O calor apertava, não havia sombra nem forma de nos esquivarmos ao aperto constante do Sol. Mas tínhamos água e os quilómetros iam passando. A paisagem ia desfilando a um ritmo muito razoável de 26km/h desde o Montijo. Nem a altimetria nem o trânsito chateavam: rolávamos quase sempre em plano, e poucos carros se viam. Apenas tínhamos que lidar com as temperaturas e manter o ritmo. Apenas.







Suponho que é nesta altura que tenho de vos apresentar, a alguns de vós pelo menos, à figura lendária do Homem da Marreta. Sim, o Homem da Marreta. Trata-se de uma personagem mitológica, tipo um Yeti da estrada nacional, ou um Big Foot das subidas de dois dígitos de inclinação. Não há provas da sua existência, mas não falta quem tenha sentido a sua presença. O Homem da Marreta é um retro-grouch, um ciclista old-school (e mais outros anglicismos que agora não consigo, assim de repente, invocar), um tipo tão duro como um marinheiro do Pequod e com o nível de empatia do Soup Nazi.

O Homem da Marreta espera pacientemente, atrás de uma moita ou a seguir a uma curva apertada, por aqueles ciclistas incautos, que não são rijos o suficiente, que não acautelaram a hidratação, não comeram como deviam, ou simplesmente se aventuraram mais longe do que a sua forma física permitia. E naquele dia, foi o meu caso. Por volta do Km 170, deixei de conseguir ir na roda do João. Tudo ficou penoso e lento e complicado. Não tinha posição na bicicleta, todas as posturas eram incómodas, o meu pé direito inchou e parecia que não cabia no sapato, o meu traseiro perecia que estava sobre umas brasas quentes. 


Acho que me voltei a esquecer do protector solar...


Tudo o que podia fazer era arrastar-me, a velocidades ridículas. E arrastei-me mesmo até ao fim, que para o caso era num monte junto à aldeia de Esperança, a um punhado de quilómetros da fronteira espanhola. Dei por mim deitado no banco de trás do carro de apoio, pois estar de pé era demasiado cansativo, enquanto se discutiam pormenores do jantar que viria a seguir. Eu pensava era em como ia conseguir fazer, já sem sem apoio, os quilómetros que tinha pela frente. Parecia que a minha boca tinha andado a passar cheques que o meu corpinho ia ter sérias dificuldades em pagar. 


Fim de dia no Alentejo


Dia 1. Isaltinistão-Esperança. 201km. (Estrada) 

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