terça-feira, 19 de outubro de 2021

Triban RC520 Gravel - Uma Review

A Triban no Gerês 

Comprei a minha Triban quase por impulso, em Novembro de 2019, quando em casa moravam já outras duas bicicletas de estrada. Estes modelos eram algo peculiares: uma Surly Long Haul Trucker, a bicicleta mais confortável em que já rolei, e uma velhinha Raleigh inglesa dos anos oitenta, que eu usava sobretudo para fins utilitários.


A minha antiga Surly 


O que eu procurava, já há algum tempo, era um modelo que permitisse substituir todas as outras bicicletas (as duas já citadas e uma BTT). A elusiva bicicleta única, que fosse capaz de fazer estrada a sério, viagens de longa distância, com carga, BTT em eventos e passeios, uso utilitário, e tudo o mais que se me ocorresse. E que fizesse tudo isto com alguma competitividade, que me permitisse participar ocasionalmente em eventos. Bem sei que não é pedir pouco, para mais de um modelo "económico". 


A Triban com todos os componentes de origem


A escolha da Triban foi motivada, se for sincero, sobretudo pelo preço aliciante, tendo em conta tudo o que oferecia. Mas pareceu-me na altura uma solução de compromisso, já que eu considerava que a Decathlon tinha sido um pouco preguiçosa e simplesmente mudado o nome e a pintura a um dos seus quadros de estrada. Era apenas uma estratégia para a marca ter um producto que lhe permitisse concorrer no mercado na área então muito na moda, o "Gravel".

Bom, isso não deixa de ser um facto: trata-se de uma bicicleta de estrada, com algumas alterações, mas eu estava enganado. Para mim esta escolha veio a revelar-se extremamente acertada, e embora a bicicleta tenha certamente limitações, é difícil para mim ver alternativas viáveis neste momento. Vamos ver o que está em causa. (Nota: não tenho nenhuma ligação com a Decathlon e estas opiniões são minhas apenas).

Quadro: Para mim carbono estava fora de questão, por causa do uso para viagens longas em autonomia e o uso de bolsas de bikepacking. Os danos por atrito dos sacos ou numa queda são um risco demasiado grande. Aço e Titânio são materiais interessantes e esteticamente mais apelativos, mas mais caros e também pesados. Por isso alumínio acaba por ser uma boa escolha. O peso neste caso é apenas aceitável (os números estão no site). A surpresa veio da geometria. Eu tinha estudado a tabela e sabia que o quadro é exactamente o mesmo da gama de estrada. Portanto trata-se de um quadro "barato" de Endurance, com uma testa alta e uma posição pouco agressiva. Isso é ideal para longas distâncias e muitas horas no selim, e a geometria veio a revelar-se muito adequada para a minha fisionomia, depois de alguns ajustes. Eu não tenho muita flexibilidade natural e a minha postura não é muito agressiva. A bicicleta é muito estável em qualquer circunstância, mas mantém a capacidade de reacção e aceleração de uma bicicleta de estrada, que uma bicicleta de viagem (touring) não tem. E fora de estrada só em BTT mais sério perde a compostura, como seria inevitável. 


Cassete, corrente e pedaleiro alterados


Grupo: A Triban vinha com um grupo Shimano 105 R7000 quase completo. Apenas a pedaleira era uma Shimano compacta de 11 velocidades, mas sem grupo, um pouco mais pesada que a 105 equivalente. Aqui eu achava que era mais uma das situações em que a Decathlon tinha feito a coisa mal, a cassete 11-32 (não Shimano) era demasiado pequena, e pensava na altura que a bicicleta deveria vir com um pedaleiro sub-compacto e talvez com um grupo GRX. A verdade é que esta mania da super-especialização dos componentes é muitas vezes exagerada. A transmissão não se desfaz se apanhar poeira por ser um grupo de estrada. O desviador Shimano 105 não é muito diferente de um Deore, as correntes e cassetes são aliás idênticas em vários grupos de estrada e BTT da Shimano, pelo que o desempenho fora de estrada não compromete. Já as relações de transmissão são claramente mais pensadas para o asfalto. Para rolar com peso extra e/ou fora de estrada (como sucede em bikepacking), optei por colocar uma pedaleira Miche 46-30 e uma cassete Shimano 105 maior, 11-34. Mesmo assim, eu agora reconheço que para um uso maioritariamente de estrada, a bicicleta vinha com um bom mix de peças. De tal forma que recentemente voltei a usar a cassete de 32 dentes original, para beneficiar de relações mais próximas entre si.    

 

Os travões facilmente se ressentem com o pó


Travões: Os travões TRP mecânico-hidráulicos permitem casar um grupo totalmente mecânico, mais barato, nestes caso os shifters Shimano 105 R7000, com o modulação e sensações de um travão hidráulico. E a verdade é que funciona. Esteticamente é uma desgraça, mas funciona. Eu travo só com um dedo a maior parte das vezes. E a sensação de controlo é sempre boa. Há que notar contudo que estes travões estão mais à vontade em estrada, basta um pouco de pó para começar a haver vibrações e perdas de potência na travagem, quando em uso em gravilha ou terra. E só depois de uma limpeza cuidadosa é possível voltar a ter uma boa performance. 


Guiador 44, mais estreito


Periféricos: Não posso falar muito destas coisas, porque foi quase tudo substituído rapidamente. O guiador era demasiado largo, o meu quadro XL vinha com guiador de 46cm, com um desenho de drops com que eu não me identifiquei. Troquei por um simples FSA de gravel, abertura a 12º, de tamanho 44. Apesar de mais pequeno ainda permitia o uso de sacos de bikepaking. O avanço de 120cm foi trocado por um de 80, para afinar a posição na bicicleta. Muitas bicicletas de gravel modernas são desenhadas para avanços curtos, e neste caso a adaptação foi natural. Sim, ao princípio eu também achei que era muito curto, mas fez maravilhas pela postura e pelo controlo da bicicleta. Mudei também o selim, por outro muito semelhante, e o espigão do selim, por estética e peso. 


No Porto!


Rodas & Pneus: Usei pouco as rodas. Eram robustas e não deram problemas, lembro-me que os cubos pareciam bastante bons para esta gama de preços. Foram trocadas por umas DT Swiss, para perder umas gramas. Os pneus Hutchinson Overide de 35mm são excelentes. Têm uma aderência teimosa e salvaram-me o pelo em mais de uma ocasião. Permitem aventuras fora de estrada que a sua diminuta largura não deixa prever. E em estrada rolam muito bem. Há melhor e mais leve (e mais caro), mas não muito. Quando comprei a bicicleta achei que os pneus eram mais um compromisso, agora acho que são um excelente compromisso! Actualmente monto pneus de 38mm, a marca só recomenda até 36, mas a verdade é que cabem 40mm se fizer falta. Mas penso voltar aos 35mm quando surgir a oportunidade, julgo que é o melhor equilíbrio estrada-gravel e a marca voltou a acertar neste aspecto.   

Dois anos depois, dois Tróia-Sagres, uma volta a Portugal de várias semanas em autonomia, uma viagem a Madrid, o caminho de Fátima, uma subida à serra da Estrela, e muitas aventuras mais pequenas pelo meio depois, a Triban provou que não é só um modelo barato feito à pressa para seduzir os adeptos da "moda" do gravel. Não se deixem enganar pelas soldaduras mais abrutalhadas, nem pela palavra "Decathlon" na testa do quadro, a bicicleta foi bem pensada, o desempenho nunca compromete e tem alma para tudo o que se propuserem fazer com ela. 


Set-up recente, na Serra da Estrela


O facto de custar menos um terço ou metade dos modelos da concorrência também não é propriamente mau. Actualmente há vários modelos e cores disponíveis, baseados no mesmo quadro, que, consta, é fabricado em Portugal (o meu, especificamente, diz "made in France"). É possível também comprar um dos modelos de estrada da gama 520 e depois adaptar a um uso mais polivalente, já que o quadro é idêntico, mudando a pintura e a selecção de componentes.   

Não tenho actualmente nenhuma outra bicicleta, nem sinto falta de nada. Sei que não é solução para toda a gente, o meu uso tem sido muito lúdico e mais estradista, ultimamente. Mas é inegável que esta proposta low-cost permite acceder a um inesgotável mundo de aventuras, cujos limites não serão impostos pela bicicleta.

quinta-feira, 7 de outubro de 2021

Crónicas do Queijo da Serra: a Montanha


Está escuro e silencioso. E um pouco fresco. Os meus movimentos estão limitados por umas paredes de material sintético e o que parece ser um cobertor muito apertado... Preciso de alguns segundos para recordar onde estou: na minha tenda pouco maior que um sarcófogo, no parque de campismo do Fundão. É a madrugada do quarto dia de viagem à Serra da Estrela, o dia da subida à Torre. 

São quatro da manhã, e embora eu sinta que já descansei o suficiente, não há luz ainda e não posso fazer nada senão esperar. Isto dá-me a ideia de pegar no telemóvel e procurar alojamento. Embora esteja a aguentar bem o frio daquela noite, continuo sem confiança de conseguir suportar a próxima dormida a 1500m, no local previsto, o Covão d'Ametade. Rapidamente faço uma reserva para a pousada da juventude da Serra da Estrela e nem posso acreditar na minha sorte. Nas semanas anteriores o local aparecia sempre sem vagas. Sinto que me foi retirado o um enorme peso de encima, agora posso concentrar-me apenas na subida. E assim me deixo voltar a cair num sono tranquilo.

Quando volto a acordar são nove e meia: um desastre! Sei que a manhã está perdida, só levantar o acampamento requer cerca de uma hora. Mas sigo os passos habituais, tão depressa quanto consigo, não há alternativa.  Trato da higiene pessoal, recupero a roupa de ciclismo que estava estendida, desmonto a tenda e arrumo tudo nos sacos, preparo os bidons com água do parque e pó para bebida isotónica que carrego desde casa. Aproveito também para olear a corrente e dar uma lavagem rápida na bicicleta.


Para cima!


Rolo para fora do parque de campismo depois das dez e meia, e ainda tenho que ir procurar pequeno almoço no Fundão, porque no parque fui avisado que não haveria. Ao pretender entrar no primeiro café que encontrei, descubro que não tenho máscara. É grave, porque vou precisar dela mais vezes. Em viagem, é preciso ter as coisas bem arrumadas, nos sacos, para não haver surpresas e uma pessoa poder concentrar-se na pilotagem. E a perda de itens imprescindíveis paga-se caro. Por exemplo, sem telemóvel, ou GPS, ou a carteira, acabou-se a viagem. A situação não é assim tão grave, mas sinto que estou de alguma forma a perder o controle. É Domingo, está tudo fechado. A tentar localizar uma farmácia de serviço, deixo cair o telemóvel no asfalto, com certa violência. Ele sobrevive e eu faço um esforço por me acalmar. Devo conseguir encontrar uma máscara nalgum lado. 

E de facto encontrei, mas foi preciso ir a uma loja "do chinês", do outro lado da cidade, e comprar um pacote de 50 máscaras. Regresso ao café e descubro que o padrão de comida em doses para criança, do dia anterior,  se mantêm: a torrada que me chega é minúscula e daquele pão que só tem ar. Olho à minha volta e constato que ninguém está a comer. Os outros clientes estão quase todos a beber vinho, cerveja e coisas mais fortes. Ainda não é meio dia. No parque, o responsável também parecia um grande entusiasta da cerveja. Acho que o Fundão merece outra visita, mas se me perguntarem agora o que se faz no Fundão, eu diria que é beber. Beber e andar em excesso de velocidade em carros do Tuning.

  

Uns metros acima de Unhais da Serra


Não posso lidar com mais atrasos e, mal comido, faço o meu caminho para fora da cidade. A ideia é atacar a serra pelo Sul. A estrada não tem muito trânsito e até é rolante. Lá há uma subida ou outra, mas o percurso inicial parece muito pacífico. Eu sei que ainda vou ter muito que subir, mas agrada-me ver os quilómetros a passar sem grande esforço. Mas depois chegamos a Unhais da Serra. E o GPS envia-me por uma encosta com uma inclinação absurda, onde vou apanhar a estrada que verdadeiramente sobe para a Serra. A partir deste momento, nunca mais paro de subir.


Um pouco de gravel


Eu tenho uma pedaleira sub-compacta e uma cassete enorme (30-46 e 11-34) e não tenho medo de usar todas as mudanças. Mas mesmo recorrendo a uma combinação 30-34, que eu raramente uso, a estrada só podia ser enfrentada subindo aos zigue-zagues, para combater a inclinação. A velocidade era penosamente baixa, muitas vezes um dígito apenas, e o Sol brilhava agora com toda a força sobre as escarpas desnudas da serra. Eu estava vestido para atacar a montanha de manhã e naquela hora de almoço tinha a roupa errada, o estômago vazio e demasiado peso na bicicleta para o que estava a fazer. Um grupo de ciclistas de estrada passou a descer e pude constatar um certo ar de pena com que me contemplaram. Mais à frente rebentei, não conseguia respirar, e tive mesmo de empurrar a bicicleta.

 

Paragem para almoço. Reparem na mudança selecionada


Mesmo apeado, nunca deixei de caminhar, todos os metros contavam. Aproveitei um pouco de sombra para me restabelecer e voltar a montar a bicicleta. As vistas eram espetaculares, mas também intimidantes, já que permitiam antever o muito que ainda estava para vir. O plano inicial era almoçar na Torre, mas isso estava agora claramente fora de questão. Por isso decidi parar para comer, saindo do Sol por um bocado. Aproveitei uma casa abandonada, junto ao local onde a subida passa a ser de gravilha, e cozinhei um almoço com o fogareiro, provavelmente de forma ilegal, pois duvido que seja permitido fazer fogo no Parque Natural.   

Acabei a refeição de massas desidratadas com um belo café e fiz um ponto da minha situação. Tinha pouca comida,  também já pouca água, não podia aliviar peso e ainda faltava muito para a Torre. Eu queria chegar antes do frio que vem com o Sol baixo, e também queria ter a certeza de estar na pousada antes de escurecer. Tudo parecia perfeitamente possível a velocidades de bicicleta, mas muito duvidoso se tivesse que andar. Como de costume, a solução era parar de pensar nas dificuldades e fazer o que tinha de ser feito: continuar a subir!


O caminho já feito...


Depois do almoço, com a altitude e a hora mais avançada, o calor foi deixando de ser um problema. A estrada continuava com a sua inclinação impossível, por vezes pejada de pedras caídas e os zigue-zagues constantes eram a única forma de prosseguir.  A situação melhorou ao sair da Nave de Santo António e entrar na N339. Nesta estrada as inclinações são um pouco mais suaves, mas aqui tinha que lidar com a presença de outros seres humanos. Era Domingo e havia muitos carros na estrada. Felizmente, todos civilizados, e a estrada, bem sinalizada, oferece muitas oportunidades de paragem, para admirar as vistas impressionantes. 


...e o caminho por fazer


Por aqui fui subindo, e subindo e subindo. Se tiverem curiosidade em saber o que vai pela cabeça de um tipo durante esses momentos de esforço prolongado, eu esclareço. Costumo focar-me num objectivo próximo, a paragem seguinte, um reabastecimento, um cruzamento onde vou apanhar outra estrada. Mas também por vezes penso em algo totalmente diferente, e mais abstrato: uma música, o argumento de um filme, algo que tenha lido. E naquele dia, por alguma razão deu-me para recordar a letra de uma musica digamos, de nicho, sobre uma particular tendência que afectava o mercado de motos clássicas: isto

Foi assim que os últimos quilómetros de subida foram feitos recitando Hugo Cardoso e sua fantástica Vespa Azul Cueca. Talvez desejasse ainda ter a minha vespa para subir à Torre, em vez de me meter a fazer aquilo de bicicleta. O certo é que estrofes como esta ecoaram pela serra: 

Foste bem comido

pelo garageiro,

teu poio polido

custou bué da dinheiro.

Quando a água realmente acabou, encontrei uma fonte de água fresca, deliciosa, na beira da estrada. A montanha também tem o seu lado generoso. Aquilo fez maravilhas pela moral, mas eu funcionava já só por pura teimosia. Numa das últimas paragens, um automobilista bem intencionado comentou alguma coisa como "com preparação tudo se consegue" ao encontrar um viajante ciclista por aquelas paragens. Não pude deixar de pensar que a minha "preparação", com visita rotineira a locais como a serra de Carnaxide (altitude máxima 211m) ou o Monsanto (altitude máxima 277m) se calhar tinha ficado curta para uma subida quase até aos 2000m, com a bicicleta carregada, depois de 4 dias a pedalar. 


No topo do mundo


Mas o esforço teria recompensa. As redomas dos antigos radares da Força Aérea há algum tempo que surgiam visíveis desde a estrada, permitindo estimar a distância para o final. E o final é mesmo um pouco anticlimático, pois o "cume" é na realidade um amplo planalto em altitude. A Serra da Estrela não tem um pico que se destaque naquele ponto.  



Marco do ponto mais alto, 1993m




Antigo Radar da FAP




Os ski lifts estavam em actividade



Não sei quem achou que um "centro comercial" a 1993m era o que a economia local precisava, mas não faz bem o meu estilo. Ainda tentei dar uma de turista, e indagar sobre o preço de algum afamado queijo, mas a forte presença de humanos levou-me a comprar apenas uma cerveja celebratoria e do queijo fiquei apenas com mémorias do cheiro intenso.

Cá fora as temperaturas estavam a descer rapidamente e já não se conseguia estar à sombra. Dei uma volta a pé, para absorver a atmosfera do local, desentorpecer as pernas e pensar nos próximos passos. A viagem não terminava ali, tinha planos para os próximos dias, mas a verdade é que aquele era sem dúvida o objectivo máximo. Porque será que damos tanta importância à montanha? O que nos leva a querer "conquista-la?" 

Para mim o mais impressionante é o silencio. Um silencio imponente. A magnitude e antiguidade do local remete-nos para a humildade e a introspecção. Por uns momentos, por fim, é possível encontrar um pouco de paz.      








Na Pousada








Rumo a Manteigas












Vale Glaciar



quarta-feira, 6 de outubro de 2021

Crónicas do Queijo da Serra: o Caminho

Caminho de Fátima/Tejo/Santiago

O velho sentado à mesa da modesta esplanada do café suburbano acompanha o meu progresso. A sua cabeça, de pele curtida pelo Sol de muitos verões, desde século e do outro, segue o movimento que descrevo, avançando rápido pela estrada. O seu rosto atrai a minha atenção, e os nossos olhares cruzam-se por breves instantes. Com uma dignidade que se lhe diria natural, o velho fixa os seus olhos em mim, antes de me cumprimentar com um contido, mas aprovador aceno da cabeça. Uma espécie de assentimento. Um reconhecimento de que ali vai outro ser humano, aparentemente em busca de algo importante.


Para os lados de Santarém


Não sei precisava de sentir esta espécie de aprovação masculina, mas foi o que marcou o início de viagem, naquele que era um dos derradeiros dias do verão. O Dentuça e eu tínhamos como sempre arrancado de casa, no Isaltinistão, estávamos às portas de Alverca, e propúnhamo-nos alcançar o ponto mais alto do Portugal do continente Europeu, antes que a estação chegasse ao fim, e com ela a temporada de viagens e aventuras de duas rodas.  

O planeamento da viagem tinha proposto demasiados quilómetros de N10 rumo a Norte, uma nacional estreita e sempre com muito trânsito, nomeadamente de pesados. Optei em vez disso por apanhar o início do caminho de Fátima junto ao Trancão, à saída de Lisboa, tal como aquando da Volta a Portugal, e por lá seguir até Santarém, onde tomaria um caminho por estrada, e junto ao rio Tejo, até Constância, onde pernoitaria. 

Neste primeiro dia, com sol firme e um percurso practicamente plano, o progresso não foi difícil. Tinha realizado um esforço por reduzir o peso na bicicleta, retirando tudo que podia dispensar, por exemplo colocando o material da tenda directamente na bolsa do guiador, dispensando o seu saco, bem como algumas estacas e o chão separado que tinha. Reduções como esta permitiram perder quase 2Kg de peso total.

 

O set-up do costume. Com algumas novidades


Por outro lado também aumentei o peso em alguns componentes e itens. Por exemplo, montava uns pneus Gravelking de 38mm, os mais largos que já tinha experimentado, mas que se revelaram tão confortáveis que não resisti a utiliza-los nesta ocasião. Pesam cerca de mais 50gr, por unidade, que os seus congéneres de 32mm usados na viagem a Madrid. Alem das dimensões, o material utilizado também é diferente, sendo uma borracha mais elástica, que dá a côr da moda às bordas do modelo mais largo. O facto de pretender acampar todas as noites e ter previsto a passagem por altitudes elevadas obrigava também a alguma contenção na altura de fazer as escolhas do que iria ou não levar na viagem.

   

Constância


O caminho de Fátima estava deserto, como é costume, mas ainda me cruzei com alguns caminhantes estrangeiros, de pele pálida e grandes mochilas de aspecto sofisticado. Não falei com ninguém, mas desconfio que sejam peregrinos de Santiago, naquelas paragens o caminho é o mesmo. Conhecendo o percurso, não senti grandes dificuldades nem encontrei surpresas. Mas após 80km tinha umas fortes dores nos pulsos, que fui ignorando até que já não tinha posição em que fosse tolerável continuar. A solução foi tirar pressão aos pneus, aqueles quilómetros a bom ritmo na gravilha, mas com pressão para asfalto, estavam a passar factura. Felizmente isso solucionou o problema e não houve sequelas. Ao fim do dia, 152km depois, estava acampado em frente ao rio Zêzere, num pequeno parque de campismo em Constância. Enquanto o meu fogareiro aquecia água para um arroz com atum retemperador, uma senhora veio oferecer-me umas enormes fatias de melão, que estava simplesmente divinal. Partilhei depois a minha refeição quente com os gatos do parque e sensibilizado com aquela simpatia de estranhos, adormeci a pensar na montanha e no que me faltava para lá chegar. 

   

O Zêzere ali ao lado


O segundo dia seria mais curto. Por causa da logística dos alojamentos, tinha planeado etapas com menos quilómetros dali em diante. A estrada à beira do Zêzere continua lindíssima, e na manhã de um dia de semana, estava também deserta. Temperatura amena e pouco relevo também ajudavam ao progresso. Mas durou pouco. Portugal é realmente um bocado enrugado. Deve ser uma chatice para invadir. 

O meu trambolho de GPS levou-me até Proença-a-Nova, em vez de directamente para o parque de campismo próximo, cuja morada eu tinha inserido. É sempre chato fazer mais uns quilómetros inesperados, mas não era longe, a estrada era divertida e ainda aproveitei para fazer umas compras na cidade.


Praia fluvial de Aldeia Ruiva


O Parque de Campismo de Aldeia Ruiva, o destino do segundo dia após apenas 67km, apresentava-se elegante, mas vazio e fechado. Por telefone consegui autorização da câmara para pernoitar. Tudo indicava que teria uma pacífica noite em solitário, num parque muito engraçado, ao lado de uma praia fluvial. Mas não tardaram a chegar pessoas, e elas não pararam de chegar até depois das onze da noite. Havia muito ruído, que é aquela coisa que mais detesto no campismo. Para compensar, tinha o luxo de poder jantar ao pôr do Sol, numa fantástica esplanada que havia mesmo ao lado do parque, e assim poupar mantimentos para a serra.


Muito frio em Aldeia Ruiva


Naquela segunda noite não dormi muito bem. Ao frio e ao ruído dos outros campistas havia que somar o barulho de um IC próximo. Pelo menos tinha pequeno almoço ali à porta, mais uma vez na esplanada com vista.  Pela frente tinha mais uns montanhosos quilómetros, desta vez apenas 87, mas com cerca de 1800m de acumulado de subida, o que não pude deixar de sentir nas pernas. Mas não havendo muito calor, a coisa foi-se fazendo. 

Sim, é por aqui!


O GPS continuava a dar-me algumas surpresas, só para a coisa não ficar aborrecida. Insistiu que eu saísse da estrada, para subir uma encosta de mais de 25% de inclinação, com piso de calhaus do tamanho de punhos. Imagino que era um atalho, mas aquela subida de umas centenas de metros custou mais que muitos quilómetros em estrada. O GPS meteu-me também pelo meio de Souto da Casa, por um caminho empedrado onde não tive outro remédio que não fosse desmontar. Um local ajudou-me a regressar à estrada para o Fundão, que estava já muito perto.


E também é por aqui


O destino na terceira noite era o belo Parque de Campismo do Fundão. Um espaço amplo, com muitas arvores e sombra. E absolutamente decadente, decrépito no que toca a instalações e cheio de moscas. Mas não é o luxo que me move, e o local prometia uma noite bem mais tranquila que a anterior. Além disso tinha um cafezito onde se podia jantar, embora isso aparentemente tivesse de ser negociado, porque a cozinheira não estava, era fim de estação e as pessoas dos parques tinham ocupações de inverno às quais estavam a começar a regressar. 


Do Fundão vê-se uns montes...


Apesar de uma negativa inicial, e talvez devido a vários turistas terem colocado a mesma questão, lá se arranjou uma cozinheira e houve direito a jantar. Já comi demasiadas vezes em parques de campismo e não estava à espera de nada muito aliciante. Mas depois de não ter realmente almoçado, vivendo à base de barras e frutos secos, o bitoque minúsculo que me serviram esteve longe de impressionar. Normalmente nunca como sobremesa, mas desta vez pedi melão, pois ainda tinha fome. Veio uma fatia fininha, uma coisa risível, sobretudo depois da generosa oferta da primeira noite. Pedi a outra sobremesa disponível, e veio um pudim flan cheio de ar, com o diâmetro pouco maior do que uma moeda. Dei-me por vencido e fui dar uma volta antes de me ir deitar.

  

Parque de Campismo do Fundão


Na tenda, de auriculares, a ouvir um podcast que tinha descarregado para o telemóvel, tinha vestido quase toda a roupa de que dispunha, para evitar o frio da noite anterior. Até a toalha, já seca, tinha trazido para colocar sobre as pernas e assim aumentar a eficácia do meu saco cama. O pior era que a noite seguinte seria passada mais de 1000 metros acima, e eu não estava certo de ter condições para aguentar a equivalente descida de 10ºC. No papel, as temperaturas previstas pareciam suportáveis com o que tinha trazido, mas na práctica não estava a ser assim. Este problema não me deixava esquecer ainda outra pequena questão: até aquele momento não era para mim seguro que conseguisse, com a bicicleta carregada, subir a montanha mais famosa do ciclismo Português. Envolto nestes pensamentos, mas confiante nos meus cuidados com o arrefecimento nocturno, depressa o cansaço se fez notar e adormeci profundamente.

terça-feira, 20 de julho de 2021

Projecto Caramelos: Dia 7 - Até às Montanhas

Dois ursos e uma bicicleta


Ao Norte da capital Espanhola fica um lugar de mistério e imponência. Os Madrileños, como todos os citadinos de uma grande e competitiva urbe, adoram escapadas de fim de semana, para destinos mais serenos nos arredores. Alguns destes possíveis destinos ficam na Serra de Guadarrama, uma solene cadeia montanhosa a Norte da capital, com picos que ultrapassam os 2000m.

Tinha decidido que o meu destino final para esta viagem seria uma destas aldeias incrustadas no sopé da serra, um curioso misto de vila alpina e subúrbio urbano, já que fica a apenas 50km da capital. Uns amigos tinham-me prometido uns dias de alojamento com direito a relaxamento total, na tranquilidade das montanhas. E isso parecia-me o final perfeito para esta pequena viagem.

Dada a proximidade, tinha planeado gastar a maior parte do dia em Madrid e seguir para Norte só no final da tarde. Assim, tratei de organizar a logística do meu regresso, planeado para uns dias mais tarde, e patear a cidade. 

Puerta del Sol



Calle Preciados



E uma estátua de corvos em Lisboa?



A velha Madrid



Mais importante, tinha um almoço (tardio, como todos em Espanha) combinado com uma amiga, que é a única pessoa que conheço que mora efectivamente na capital do reino. Passámos horas à conversa numa simpática esplanada. Acho que perdi um pouco a noção do tempo, até que um sopro de vento fez voar alguns itens de cima da mesa. Olhei para o céu, e fui surpreendido por umas nuvens sinistras que se avizinhavam, no que até ao momento tinha sido um impecável céu limpo.

Passava das 18 horas, e eu considerei aquela a minha deixa para me pôr a caminho. A travessia da capital teria sido facilitada se o meu pneu traseiro não estivesse vazio. Não compreendi como tinha furado entretanto, mas acabei por deduzir que a válvula da câmera de ar que tinha instalado uns dias atrás não estava a vedar bem. Bombei um pouco de ar, junto ao Bernabéu, e segui caminho. Tinha alguma pressa, já que agora era evidente que uma tempestade se aproximava, dirigindo-se, tal como eu, para Norte.    


O céu limpo deu lugar a nuvens sinistras


Encontrei com alguma facilidade a ciclovia que segue para Norte, um percurso que em outras ocasiões tinha visto da estrada e que sabia me poderia levar até muito perto do destino. Este é o habitat natural dos ciclistas de estrada da zona, e foi sem surpresa que me cruzei com muitos deles. Seguiam todos na direcção contrária, apressados por se abrigarem da tormenta que todos sabíamos próxima. 


Para Norte!


Embora o pôr do sol estivesse previsto para dali a mais de duas horas, o céu escureceu de forma assinalável, à medida que a frente de tempestade se aproximava. Os outros ciclistas começaram a escassear na ciclovia, até desaparecerem por completo. Agora estava só eu, rumando a Norte, numa corrida contra a tempestade. Eu desconfiava que quando aquela massa de ar colidisse com as montanhas à nossa frente, o resultado não seria muito agradável para mim. 



Percebem?


E não foi. O trovejar começou distante, mas em pouco tempo os raios caiam à minha volta, sem refugio à vista. O céu escureceu ainda mais, até ficar practicamente de noite, e uma chuva ligeira começou a cair, obrigando-me a parar para colocar o impermeável, a primeira vez que o usei na viagem. Era capaz de jurar que até o Dentuça estava intimidado, sobretudo quando a ciclovia acabou e tivemos que nos fazer à estrada.   


A coisa promete!


E foi neste troço, de estrada estreita, sem berma e com bastante trânsito, que os céus finalmente se abriram e um dilúvio impiedoso assolou o sopé da serra, retirando ainda mais visibilidade e obrigando-me a cuidados redobrados. Apesar de duas boas luzes na traseira, levei com algumas razias preocupantes. De notar que os automobilistas espanhóis costumam respeitar os ciclistas muito mais que os portugueses (respeito é um conceito estranho em Portugal), mas por norma conduzem, na minha opinião, tecnicamente pior. Ou seja, têm um pior domínio do veículo e são mais facilmente surpreendidos por imprevistos.

Naquela estrada senti-me verdadeiramente em perigo, mas não havia muitas alternativas a continuar. Até que surgiu uma muito rara paragem de autocarro, com abrigo, que eu imediatamente adoptei como refugio. Foi um achado providencial, pois o dilúvio já me tinha ensopado até aos ossos, e a estrada estava mesmo perigosa, com a visibilidade extremamente reduzida.


Na paragem do BUS


Uns minutos depois, as coisas acalmaram e eu regressei à estrada, que me havia de levar à magia da montanha em Manzanares el Real. Esperava-me um belo jantar entre amigos e uns dias de merecido descanso do guerreiro. 




Dia 7. Madrid-Manzanares el Real. 49km. (Estrada/Ciclovia)