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Vale tudo menos tirar olhos? |
Embora eu seja fotógrafo, nunca senti a tentação de descobrir e retratar pessoas de bicicleta na rua. Eu sei que
está na moda e até aprecio o conceito, embora não necessariamente todos os seus resultados. Não excluo fazer algo semelhante de futuro, mas por agora prefiro manter o foco de trazer alguma realidade a este estranho fenómeno do ciclismo urbano, porque muitas vezes sinto que os discursos neste meio se centram numa certa visão utópica do utilitarismo. Assim, em vez de imagens de raparigas bonitas a passear descontraidamente em ruas sem trânsito (nada contra!), eis um relato nu e cru de um dos trajectos que faço habitualmente.
Estação do Cais do Sodré, 15:35 horas. Saio do comboio da CP no meio de um coro de protestos quanto ao atraso da composição e a temperatura excessiva no interior da mesma. Está muito calor, parece um dia de verão. Começo a imaginar o estado em que vou chegar ao destino, as calças de ganga e t-shirt parecem-me demasiado. Coloco o capacete e as luvas sem dedos e arranco para o meio dos taxistas e autocarros da Carris que dominam a praça.
O semáforo fica verde e, da frente da fila, avanço para a minha primeira infracção: sigo pela Rua do Arsenal, onde o trânsito é suposto estar limitado aos transportes públicos, mas onde se podem encontrar enlatados de toda a espécie. Como de costume, não há qualquer problema na interacção com os autocarros e eléctricos, uma vez que eu consigo acompanhar o seu ritmo. Os peões que saltam para a estrada quando eu estou "apertado" entre os muitos buracos e os carris do eléctrico são um problema mais sério.
Depois de novo semáforo, entro no Terreiro do Paço (eu sou tão
old school que ainda resisto a chamar-lhe "Praça do Comercio") e tenho que lidar com mais carris de eléctrico e autocarros. Continuo "ilegal", mas por pouco tempo.
Corre a notícia que a CML se prepara para autorizar a circulação de velocípedes em zonas BUS, com certas restrições. Em Portugal há sempre a mania das excepções, a ponto de normalmente as regras ficarem incompreensíveis e cada um fazer o que bem lhe apetece. Não percebo porque hão de existir restrições neste caso. Adiante.
Viro à esquerda e começo a subir a Rua da Prata, onde ultrapasso um autocarro. Sigo a bom ritmo na faixa da direita atrás de um Citröen quando a senhora que o conduz decide que quer estacionar. Guardo uma distância de segurança razoável, mas não estava à espera da paragem, uma vez que ali não há
onde estacionar. Como para qualquer bom portuga, daqueles do bigode e pelo do peito à vista, (mesmo que seja neste caso um bigode metafórico, que senhora vai
formosa mas não segura) isso não representa nenhum problema: ela atira o carro para cima do passeio de uma das mais nobres vias da capital e puxa do travão de mão, parando abruptamente. Duas rodas ficam em cima da calcada, duas em cima do asfalto: quem vier atrás que feche a porta. Desvio-me da traseira do carro com algum esforço e vocalizo um protesto, ao melhor estilo
Homens da Luta, na forma de um bem audível
Então, pá?!
Depois de
aterrorizar a pobre condutora e surpreender os pacatos transeuntes, a quem (julgo) o meu protesto pareceu bem mais reprovável que a atitude da automobilista, chego à Praça da Figueira apanhando os semáforos verdes e entrando de imediato no Rossio. Nesta mui nobre praça está instalada a confusão, com vários autocarros de turismo parados em segunda fila, no local onde os seus congéneres da
Carris procuram estacionar. Tenho que ter cuidado no meio destes colossos e quando me livro do aperto sou surpreendido pelo grito, em jeito de desabafo, de uma
florista instalada perto da entrada do Metro: -
Caralho!!!! Esta gente não compra nada!! - Ainda há dúvidas que a
crise está instalada?
Os taxistas que me ultrapassaram entretanto, são por sua vez por mim ultrapassados no semáforo dos Restauradores, onde viro à direita para subir a Av. da Liberdade pela lateral. Pouco depois é chegada a hora de accionar a roda pedaleira pequena, que a subida se torna pronunciada. Mais à frente a rua estreita, passa a existir uma só faixa disponível e as ultrapassagens tornam-se perigosas, pelo que eu passo a ocupar o centro da via (outra ilegalidade, de acordo com o
CE português). Sem stress, os carros circulam devagar e eu facilito as ultrapassagens sempre que possível.
Passo o
Tivoli e viro à direita, continuando a subida agora pela Rua Rodrigues Sampaio, onde há menos trânsito, mas existem alguns cruzamentos perigosos, sem semáforos e sem prioridade. Passo pelas traseiras do
DN e quase sou esmagado por um furgão que decidiu mudar de faixa, enquanto o condutor dava uma passa no cigarro e falava com o colega. Eu estava atento e tinha espaço para a manobra evasiva, por isso não houve alarme. No semáforo arranco antes de toda a gente e viro para a esquerda, passando nas traseiras da EDP, e entrando na rua Actor Tasso. Aqui tenho que recorrer à experiência de leitura de terreno que o BTT proporciona.
A bicicleta não tem suspensão e o único amortecimento é assegurado pelos pneus relativamente largos. Isso e os meus braços e pernas! O pavimento neste troço é uma superfície disforme, um empedrado ondulado e esburacado, e no fim da descida está um semáforo vermelho. Os travões asseguram uma paragem segura e dai a pouco estou de novo a subir, em pedaleira pequena. Na rua Latino Coelho, um tipo num BMW tenta espalmar-me contra os carros estacionados. Normalmente encontro bastante civilidade, mas
patos bravos destes apanham-se de vez em quando. Luto por manter a minha posição na estrada e passado pouco tempo o BMW fica para trás, preso numa longa fila de carros parados que eu ultrapasso tranquilamente pela lateral.
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Ela adora o vermelho! |
Um semáforo e um cruzamento manhoso depois (rua Marquês de Fronteira) e estou prestes a entrar num troço de "ciclovia" que passa em frente ao
CAM da Gulbenkian e faz a ligação para a Av. de Berna. O único problema é já uma tradição:
normalmente está sempre algum carro, com alguém lá dentro, parado em cima do começo da ciclovia, a bloquear completamente a passagem.
Normalmente eu digo qualquer coisa à pessoa, do tipo "Você não está aí bem" e recebo
normalmente uma resposta do tipo "
deves ter muito a ver com isso!" Foi exactamente o que sucedeu hoje, o que me deixou com o humor certo para encarar as muitas pessoas que preferem a vermelhidão da ciclovia às pedras do passeio ali ao lado, bem mais largo. Usar a campainha é inútil e se alguns (poucos) se desviam, outros ficam a olhar intensamente, num medir de forças do género
game of chicken. Eu percebo que alguns peões sejam contra as ciclovias em cima de passeios, mesmo que largos como é o caso, mas tenho ideia que a maioria não tem sequer noção de onde está e do que se está a passar. Curiosamente, se alguém estacionar um carro em cima do passeio naquela zona, ninguém diz nada. Foi por isso com alguma irritação que escutei uma boca qualquer sobre
excesso de velocidade, lançada por um dos incondicionais do tapete vermelho. Não tenho paciência para tanta ignorância e respondi com um
indesculpável gesto, que na altura me pareceu a única resposta adequada.
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Av. de Berna em todo o seu esplendor |
Alguns segundos depois já estou na Av. De Berna, ou como os senhores automobilistas a conhecem, a
Autoestrada de Berna ou
a recta do picanço. Aqui a única coisa a fazer é pedalar rápido e esperar que as
estatísticas sobre colisões por trás estejam correctas...
Este relato refere-se a uns escassos 6 km. Circular em Lisboa
é isto, embora a experiência de cada um possa variar.
Percurso:
6,04 Km
Tempo:
23 minutos
Velocidade Média:
15,6 km/h
Velocidade Máxima:
35 km/h
Estado do ciclista à chegada:
Apresentável