segunda-feira, 16 de dezembro de 2013

Tróia - Sagres 2013 ou Como eu Aprendi a Deixar de me Preocupar e Passei a Amar a Dor


Furgão é para meninos: aluga mas é um autocarro

"Se fosse para trabalhar não estavam aqui a esta hora!" - atirou alguém à multidão reunida no cais de embarque do ferry em Setúbal. Perante a risada geral dos companheiros, o veterano ciclista concluiu com um contundente "ah pois é!". Eram 7:10 de uma fresca manhã de sábado e passados poucos minutos começava o embarque. Para ali estar pronto e equipado tinha saído da cama às cinco da manhã e acreditem que poucas coisas na vida me arrancam da cama a uma hora dessas. Pela frente tínhamos não só a pequena travessia rumo ao Cais Sul de Tróia, como os 202km e muitas horas até à histórica localidade algarvia.

Felicidade é: sair da cama às 5 da manhã e pedalar 200km!

Já a bordo do ferry, houve tempo para descontrair da ansiedade e das preocupações das primeiras horas da manhã: carregar o carro, chegar a tempo a Setúbal, descarregar o carro, levar comida e água para os primeiros km, não esquecer nada, acertar local de paragem com o carro de apoio, etc. Tudo isso ficava agora para trás. Podíamos relaxar e confraternizar com os companheiros de aventura. Conheci um advogado simpático (todo crábonizado) que trazia um speedneedle às costas: tinha mudado em cima da hora para um selim mais confortável na sua Scott, mas teve receio que o seu posterior não se acostumasse e trazia o selim suplente para qualquer eventualidade. Como aquilo pesa menos que uma barra energética, até não foi mal pensado. (Mais à frente descobri que ele voltou de facto ao setup original).

Licras asfálticos dominam o Ferry

Ainda a bordo do ferry comecei a reparar em vários pormenores interessantes referentes ao Tróia-Sagres. É suposto ser um evento com grandes tradições no BTT, afinal a fórmula original do louco passeio criado por António Malvar era a utilização de bicicletas de BTT, mesmo que montando pneu (e outros acessórios) de estrada. Mas à minha volta via-se e sentia-se um enorme domínio da bicicleta de estrada, talvez da ordem dos 80%. Um olhar mais minucioso ao equipamento, às jerseys de clubes, etc, permitia adivinhar que muita desta malta era de facto do BTT. É um facto indiscutível que hoje em dia quase todo o BTTetista empedernido tem também uma estradista asfáltica em casa, e provavelmente muitos concluíram que essa era a ferramenta certa para uma viagem de 202 quilómetros, todos eles em... estrada!

"Ele troca. Olhe que é um clássico!"

Nesta fase já a minha Raleigh atraía curiosos, ajudada pelo facto de um dos meus companheiros estar constantemente a garantir aos ciclistas que passavam, com grandes biclas em crábono, que eu estaria disposto a trocar a minha máquina pela deles. Este clima de boa disposição durou até a rampa descer em Tróia e o desembarque começar. Atrasados por um GPS bloqueado e pelo meu conta km que se recusava a dar sinais de vida, o meu grupo de bravos guerreiros do asfalto foi o último a sair do cais. Eram cerca das oito da manhã e na rotunda que dá acesso à estrada para o Sul reinava o caos. Por todo o lado furgões, carrinhas e até autocarros descarregaram uma confusão de homens de licra, bicicletas e equipamento. Aqueles já prontos a rolar ziguezagueavam por entre estes frenéticos preparativos e o caótico trânsito lento. Começava a viagem.

Mais aço inglês de alta qualidade a bordo: um quadro Genesis Equilibrium

Assim que foi possível acelerar, o ritmo passou para uns 27 - 30 quilómetros por hora e por aí se manteve. A estrada estava cheia de ciclistas, os poucos automóveis eram completamente cercados e tudo o que podiam fazer era esperar. Ao mesmo tempo, havia grupos enormes, autênticos pelotões, a rolar a velocidades bem altas. Um colorido impressionante na estrada, agora que o Sol já brilhava e começava também a distribuir algum calor. Tudo se passou muito rapidamente até Melides, onde fiz a primeira paragem. Não era necessária, mas como vinha em esforço para tentar manter o ritmo dos meus companheiros, resolvi parar e encher o bidom. Até aí nada de especial a assinalar, tinha saltado a corrente logo na partida e a afinação que fiz ao sensor do ciclo-computador foi um bocado à bruta, e agora o íman estava a bater no sensor a cada volta, fazendo um ruído irritante.

Estes componentes andaram quase 100km a bater um no outro. Arggghh!

Até Sines também rolei bem, agora já muito tempo sozinho, não tinha ritmo para os meus companheiros nem para me colar a um dos pelotões que passava, sempre a grande velocidade. O vento começou a fazer estragos por esta altura. Após paragem e novo reabastecimento um pouco depois de Sines, as coisas começaram a descambar. Sentia as pernas pesadas e os músculos doridos e ainda tinha mais de metade do percurso pela frente. Já tinha dificuldade em encontrar posição confortável em cima do selim, o meu posterior já ia dorido. Mais alarmante era uma inédita dor nos joelhos que se ia instalando. Tinha conseguido dormir apenas duas horas e estava a pagar o preço, com juros, da minha falta de preparação. A dúvida ameaçava instalar-se.

Depois de Sines, menos ciclistas e mais carros

Os próximos quilómetros forma muito duros. Via a minha média constantemente a baixar, dos 27km/h passou para 26, depois para os 25 e eventualmente ainda menos. A todo o momento recalculava a hora prevista de chegada a Sagres e percebia que corria sérios riscos de chegar após o pôr do Sol. Ao quilómetro 120 o GPS morreu, as pilhas nem duraram meio dia. Estava a rolar sozinho há algum tempo, a minha média continuava a baixar, e agora tinha receio de me perder. Psicologicamente estava a ir abaixo, as pernas não respondiam, dei por mim a subir um troço com uma inclinação suave a 12km/h, numa mudança super leve. Mesmo assim estava a custar como se fosse a subida para a Torre. Parei.

E tirei esta foto:


E esta:


E mais esta:

Mo-rreu! Felizmente o jurássico ciclocomputador é mais fiável

Faltavam cerca de oitenta quilómetros, mas podiam ser mil. Tinha que por as ideias em ordem. Estive ali uns cinco minutos e quando arranquei estava decidido a chegar ao fim nem que fosse de gatas. Fui-me concentrando na paisagem, nas pequenas trocas de palavras com outros ciclistas, em que a norma era o incentivo mutuo. Havia boas energias por aquela estrada, e também alguma comédia (e loucura). Muita gente elogiou a minha bicicleta ou fez humor com ela (não sou ciumento). Eu era o "amigo vintage", a Raleigh era "a relíquia" e "à maneira". Pelo caminho encontrei muitos personagens curiosos e montadas invulgares. Havia bonitas sigle speeds e fixies (chamem-me o que quiserem, mas é desmoralizante como o camandro ser ultrapassado por uma single speed!), bicicletas de estrada quase da idade da minha ou mais velhas, várias dobráveis, entre as quais uma Dahon toda kitada, e uma Bromptom completa com todos os extras, incluído uma generosa mala Brompton montada na frente, cheia até rebentar.

Paragem para WC, porque tudo o resto que seja preciso já deve estar naquela mala!

Substitui as pilhas do GPS. Sobrevivi não sei bem como à única subida realmente dura da viagem e fui fazendo o meu caminho para Sul, mas o pôr do Sol aproximava-se rapidamente e eu ainda tinha muito para andar. Não havia nada a fazer senão insistir. Para ajudar à festa, a segunda metade do percurso é mais fértil em sobe-e-desce, o que não era inteiramente mau. Depois da subida podia sempre descansar um bocado na descida, mudar a posição do corpo e deixar rolar em roda livre, coisa quase sempre impossível no resto do percurso. A "relíquia" tem uma limitação nestas situações: uma vez comprometido numa descida rápida, não me atrevo a tirar as mãos do guiador para colocar mudanças mais pesadas, e assim não aproveitava ao máximo esses momentos em que tinha a ajuda da gravidade. A colocação das alavancas não se presta a "trocas de caixa" rápidas, pelo que muitas vezes nem tentava e rolava quilómetros e quilómetros na mesma mudança.

Funcionais e precisas q.b. Rápidas não são
 
Entretido com o caminho com mais curvas e subidas e descidas, já no Algarve, os quilómetros foram passando. Após uma última paragem a 20km do final, arranquei com a faca nos dentes na tentativa de não ser apanhado na estrada quando escurecesse em definitivo. Recuperei algum tempo, mas foi em vão. Acabei na escuridão total, a rolar a 30km/h na berma da estrada nacional. Mais uma vez um companheiro do pedal foi a minha salvação, um BTTista com luzes permitiu-me seguir com alguma segurança, na roda dele, até à entrada de Sagres.

Basicamente, foi isto

Exactamente dez horas depois de ter começado, pelas 18:00h entrava em Sagres, a localidade mergulhada na escuridão e invadida por um mar de crábono e homens de licra. O ciclocomputador marcava 198,32km, a diferença para o total de 202km do track semi-oficial justificada pela localização actual mais a Sul do cais de Tróia. Ao todo eu tinha parado uns muito longos 78 minutos, mas sem isso acho que nem teria chegado. A minha velocidade mérdia ficou-se pelos 23,0km/h, o que não está mal para quem não treinou nada e foi de "clássico" para o Algarve.

Alguém comentava que ir para Sagres de duas rodas com motor provavelmente ficava mais barato. Pode ser verdade, porque eu ao longo do percurso consumi isto:

  • 2 Sandes de Queijo
  • Uma Empada de Galinha
  • 4 Barras de Chocolate e Banana
  • 1 Barra de Cereais
  • 4 Pacotes de Gel
  • 1 Banana
  • 4 Bidons com Bebida Iso-coisa
  • Pedaços de Manga
  • Frutos Secos
Em litros aos 100km deve ser menos que uma pick-up V8 americana, mas mais que um Prius. Voltando a questão que tinha colocado anteriormente:

É possível uma pessoa normal, sem preparação, meter-se a pedalar uma distância de 200km, que envolve um esforço continuado de um dia inteiro, e chegar ao fim vivo?

Sim.

E fazê-lo numa bicicleta qualquer?

Sim.

Se me perguntarem se vai ser divertido, depende de como lidem com o esforço prolongado e com um bocadinho de dor. Eu gostei. Mas agora tenho que me ir embora, estão ali à minha espera para eu assinar os papeis para o transplante do escroto.

10 comentários:

  1. Bessa, grande ritmo de escrita e bela aventura solitária.


    Um abraço,
    Vasco

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  2. hahaha :) Delicioso! Adorei ler esta posta. Obrigado!!
    Parabéns também pelo passeio. A forma física pode não ser a mais recomendável mas o espirito está lá! Os meus passeios longos também são assim: mais vontade que pernas ;) e mais ou menos empenado, lá vou chegando ao fim...
    Abraço
    Júlio

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  3. Parabéns! e obrigado pelo relato tão interessante (e também da resposta à pergunta tão importante de saber se qualquer um pode fazer 200Km sem treino)

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  4. Excelente relato do dia de aventura que foi o passado Domingo!

    Julgo-me um pouco mais preparado fisicamente que tu, mas comecei a sentir exactamente as mesmas dificuldades e dúvidas na aproximação a Sines. Tinha feito 50, 60 Km e pensava: "Se agora já estou assim... Como é que estarei nos 100 ou 120?!". Mas com calma, algumas pausas para esticar o corpo, e com uma maior concentração para viver e inspirar o ambiente que me rodeava o resto da viagem até foi feita muito bem!

    Também foi a minha estreia nesta épica jornada e posso dizer que foi dos dias mais esplêndidos que vivi desde que ando de bicicleta!

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  5. Excelente...É esse o espirito. Adorei o relato.

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  6. É esse o espírito :)
    Também me estreei este ano na Clássica TroiaSagres e adorei...
    Foi fantastico, nunca vi tanta bicicleta junta na estrada!!
    Parabens a todos, parabens especiais ao Senhor Malvar!

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  7. Crónica fantabulástica e tudo pelo simples prazer de pedalar.

    Já agora fica aqui o convite para se juntarem aos randocoisos de Portugal em http://www.randonneursportugal.pt/

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  8. Top:-) é a ler crónicas como está que nos dão força e vontade destas aventuras. Vim tarde mas sempre a tempo da 1ª vez na 25º edição do tão falado Tróia-Sagres que se vai realizar daqui a pouco mais que 3 semanas.

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  9. Que excelente relato, como gostei de reviver esta aventura. Eu sou o homem do speednedle que referes no texto e gostava de voltar ao contacto contigo. Se puderes, envia um email para eloyrodrigues@eloy.pt.

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  10. Andava eu à procura de boas histórias, sobre o Troia-Sagres, e eis que surge este primoroso e, ao mesmo tempo, hilariante relato de uma epopeia que espero vir a realizar. As lágrimas saíram, pontualmente, provocadas pelo riso constante, mas consciente que quem anda de bicicleta sabe o que são dores, quase diria de parto (imagino). O relato do consumo energético contraposto com o consumo da pick-up versus o prius foi o remate que abre o apetite para qualquer ciclo(me)turista. Fiquei curioso se voltou a repetir a experiência…

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