terça-feira, 31 de dezembro de 2013

2013 foi do camandro, 2014 vai ser do catano!

Eis-nos de novo naquela fatídica altura do ano: o momento da revisão no telejornal dos principais acontecimentos que foram notícia, em Portugal e no mundo, nos últimos doze meses. Ora sucede que 2013 foi um ano particularmente interessante para os apoiantes da causa do pedal. Mas se foi possível que a bicicleta fosse noticia ao longo dos últimos meses, não será certamente o tipo de coisa que as TV's se dediquem a recordar nesta época. Não se pode competir com o selfie no funeral do Mandela, ou com o regresso de Mourinho ao Chelsea.

Mas para isso estou cá eu. Sem mais demoras, das montanhas do Isaltinistão para o mundo, eis os mais importantes ciclo-aconteceimentos de 2013. Um ano que começou assim:

Um milhar em todo o país?

Logo no início do ano, as forças vivas do ciclismo e algumas celebridades uniram esforços para passar uma simples mensagem, basicamente recordar a todos que os ciclistas existem, também são utentes da via pública e que merecem ser respeitados. A exposição mediática conseguida na altura foi significativa.



Num sábado tempestuoso, em que foram emitidos alertas meteorológicos que recomendavam justamente às pessoas que não saíssem de casa, as televisões tinham outras coisas que noticiar. Mesmo assim não faltaram esforços para difundir um evento de nível nacional, que acabou por ter pouca adesão mas bastante divulgação. O Markl explica do que se tratava:



A aparente falta de adesão na altura chegou a ser criticada. Estava no entanto dado o mote para um ano extremamente mediático para a bicicleta no nosso país. Enquanto dezenas de milhares de portugueses fugiam à crise galopante e abandonavam este Portugal esquecido pela Grande Marmota que está no Céu, alguns para se instalarem em autênticos paraísos da bicicleta, por cá a luta continuava. Ainda que muitas vezes sobre o signo da excentricidade, a bicicleta ocupava cada vez mais espaço nos jornais, revistas e televisões.

Ainda no início do ano, entrevista com o director da FPCUB na RTP 2:



Hugo Sabido e Rui Sousa na RTP 2:



Além da mensagem mais institucional de organizações e ciclistas famosos, as TV's mostraram interesse, a uma escala nunca vista, por aqueles "maluquinhos" que trocaram o carro pela bicicleta na sua vida diária.

No Porto:



Ou em Lisboa:



São só alguns exemplos, porque em 2013 a bicicleta esteve definitivamente na moda, aparecendo cada vez mais em público não só em noticias como em campanhas de marketing e publicidade, ou mesmo como objecto decorativo. Em paralelo com tudo isto, era possível visualizar, nas ruas de Lisboa, um aumento significativo dos utilizadores de bicicleta. Não há estatísticas nem cálculos decentes que permitam estimar o número de ciclistas urbanos entre nós, mas tudo parece indicar, pelo menos a olhómetro, que têm vindo a aumentar substancialmente.

O culminar aparente desta dinâmica de crescimento real e mediático no uso e defesa da bicicleta como meio de transporte foi a aprovação, a meio do ano, de alterações ao código da estrada que contemplam algumas novidades interessantes para os ciclistas. Como nunca é demais recordar, as principais alterações são:

  • Obrigatoriedade dos veículos motorizados deixarem um espaço lateral de 1,5m na ultrapassagem a velocípedes, abrandando também a velocidade.
  • Equiparação dos velocípedes, para fins de definição de prioridade, a qualquer outro veículo nos cruzamentos não sinalizados.
  • Quando autorizado pelos municípios, os velocípedes poderão circular em faixas BUS.
  • Permissão de circulação nos passeios para crianças até aos 10 anos
  • Obrigatoriedade de cedência de passagem aos velocípedes quando atravessam as passagens especiais assinaladas para estes.
  • Fim da obrigatoriedade de circular o mais à direita possível da via.
  • Fim da obrigatoriedade de circular na ciclovia.
  • Fim da proibição de circular a par.

O decreto de lei que aprova esta coisa toda entra em vigor daqui a menos de 24 horas, a 1 de Janeiro de 2014. Há toda uma série de razões, históricas e sociais, para questionar a possível eficácia destas alterações. Mas deixemos isso para depois. Não menosprezemos o facto de que se tratou mesmo de uma grande vitória. O resultado do esforço e contributo de inúmeras pessoas e uma marco incontornável na caminhada para o que eu chamaria de normalidade no uso da bicicleta como meio de transporte. Ponto. 

A novidade de 2012 morreu em 2013

Em Lisboa, aparentemente por causa das reclamações de ciclistas e de automobilistas, a Câmara de Lisboa recuou nas polémicas alterações à circulação na Av. da Liberdade, e os ciclistas voltaram a poder usar as laterais da avenida. Infelizmente isso implica circular aos ziguezagues, e fazer mais quilómetros e paragens que o necessário, mas a velha CML prosseguiu em 2013 com a sua táctica habitual de dar um passo para a frente e dois passos para trás, no que aos modos suaves diz respeito.

Imagem: Público

Com a reeleição de António Costa, as coisas não devem mudar, provavelmente podemos continuar a contar com ciclovias decorativas e a tradicional falta de coragem para eliminar faixas de rodagem, reduzir os espaço de estacionamento público em excesso, acabar com o estacionamento selvagem, baixar os limites de velocidade, fiscalizar os muitos abusos rodoviários, etc. Nada tenho contra o António Costa, se calhar até era o candidato a Lisboa mais pró-modos-mais-ou-menos-suaves, mas isso diz alguma coisa do nosso complicado panorama político.

Também em 2013, onde há ciclovias há polémica

Mesmo assim, tivemos direito a mais ciclovias lisboetas em 2013. E mais estão, aparentemente, na forja. Nesse capítulo 2013 foi uma ano de mais do mesmo: mais obra e mais polémica também. As coisas vão andando, só não se sabe se é para a frente.

Rui Costa emocionado

Quem sabe para onde vai é outro Costa, e outro acontecimento incontornável de 2013: a vitória nos campeonatos do mundo de estrada de um rapaz promessa do ciclismo português, que tive o prazer de conhecer e fotografar certo dia na Povoa do Varzim. A magnitude da coisa escapou um pouco ao país devoto do futebol, mas mesmo assim o triunfo de Rui Costa em Florença dificilmente podia ser ignorado. Foi um ano muito especial para o português, que sumou ainda várias outras vitórias "menores", como duas etapas da Volta à França, e acabou premiado atleta do ano, à frente do colosso Cristiano Osvaldo. Coisa pouca.

E muito mais aconteceu em 2013. A velha raposa matreira Lance-Macho-Alfa-Armstrong foi finalmente obrigado a confessar os seus pecados, coisa que fez sem perder a sua lendária arrogância e sobranceria. A UCI parece continuar cheia da podres, mas até ao momento conseguiram sobreviver ao escândalo e tratam de convencer o público que as mesmas pessoas que estiveram na cama com o Armstrong (espero que não literalmente) gerem agora um desporto limpinho. 

"Tipo, menti e coiso. Mas vamos falar do MEU futuro"

Em 2013, apesar da crise, continuaram os eventos de bicicleta (menos o Bike Tour), as maratonas BTT, passeios Chic, festivais de cinema, etc. Também é cada vez mais fácil comprar uma bicicleta utilitária, não só há mais lojas vocacionadas também para o ciclista urbano, como as já existentes parecem ter acordado para este novo mercado de utilizadores (em vez de gozarem com eles).

"EP diz NÃO!"

Há outras lutas que foram adiadas, como a travessia ciclo-pedonal da Ponte 25 de Abril, uma possibilidade rejeitada liminarmente pela Estradas de Portugal. Ou a implementação da eternamente adiada rede de Bicicletas Partilhadas de Lisboa. Diz que algo está para breve.

E muito mais aconteceu em 2013, pelo que muito mais haveria a dizer. Mas não temos tempo. Deixo-vos com um último acontecimento feliz de 2013, mesmo que a maioria dos eleitores de Oeiras aparentemente não concordem. Um feliz e prospero 2014 para todos, com muita pedalada!

"O Vistas avisou-me para não deixar cair o sabonete"

quarta-feira, 18 de dezembro de 2013

A gloriosa hora do almoço, a Gloriosa Bicicleta e o Velho Lau

Saiam da Frente! Hoje é cozido!!
 
Então, essas compras de Natal? Tá tudo? Hem? Não querem falar nisso? Vai quê?? Compreendo. Mas cuidado com deixar demasiadas coisas para a última hora, já sabem como é o Zé-do-Enlatado Tuga: vai tratar de compensar o atraso assim que se sentar ao volante. Nada como partilhar a estrada com uma horda de automobilistas ainda mais enraivecidos e tresloucados que o habitual, na senda do último par de peúgas para a avó e da caixa XXL de Ferrero Rocher para boazuda do economato. (Pode ser que pinte um clima...) Ah, o Natal, o Natal. Já sinto o cheiro a benzina no ar!

"Na hora do almoço, tem cuidado, moço"

Bom, e falando em enlatados enraivecidos, já reparam como a hora do almoço é capaz de ser ainda pior que a hora de ponta da manhã e da tarde? Estava aqui a tentar pensar num trocadilho, tipo "esfomeados ao volante, perigo constante" ou "hora do almoço, acelera que dá gozo", ou ainda "Saí lá da frente, tenho que ir dar ao dente". Enfim, a questão é a mesma de sempre, o automobilista médio sobrestima a capacidade que tem de se deslocar rapidamente na sua viatura movida a nhanha de dinossauro, esquecendo sempre de contar com demoras com o trânsito, os semáforos, passadeiras, cruzamentos, etc, e resolve sair da empresa e ir almoçar a algum sítio fora das redondezas. Afinal uma hora dá para muita coisa! Para ter tempo de comer o bitoque no restaurante favorito ou poupar uns cobres almoçando em casa, e ainda ir ao banco ou à farmácia, anda para trás e para a frente numa correria louca que o deixa cego a outros utentes da via, principalmente os mais vulneráveis, como peões e ciclistas. Quantos destes histéricos sprints gastronómicos não terão já acabado com a vida de um ciclista? Não faço ideia, mas para mim a hora do almoço dos dias de semana é como o período nocturno: circulo de bicicleta com cuidado extra.

Foto: "Portugal 50 Anos de Ciclismo"

Mas por muito cuidado que se tenha, o perigo existe. Que o diga Venceslau Fernandes, que este fim de semana levou com um enlatado cheio de pressa para ir às compras (ao Pingo Doce), e foi parar ao hospital com várias fracturas sérias. Com 68 anos estas coisas tornam-se ainda mais complicadas, mas o lendário vencedor da Volta a Portugal de 1984, quando já ia nos 39 anos (e cuja carreira acabaria apenas aos 46 anos de idade), tem fama de ser rijo que nem uma barra de ferro. Espero que faça jus a essa reputação, e recupere depressa. Recordo com algum alarme que a própria Vanessa Fernandes, a famosa filha do Velho Lau, ainda em 2010 teve também um encontro imediato com um paquiderme de aço durante um treino, que implicou cuidados médicos e uma temporada de baixa. Este país...

Ainda se diz "like!"?

Mas vamos esquecer as coisas tristes por uns momentos e abraçar a imensa paixão pela bicicleta! Pelo menos é o que propõem os autores de "A Gloriosa Bicicleta", o livro da moda desta quadra natalícia. Sendo os autores, além de ciclistas urbanos, membros veteranos dos media, não é de estranhar que se saibam mexer na comunicação social e nas redes sociais, onde esta obra tem conseguido atrair as atenções de adeptos da causa e não só. Não sei se se trata apenas de "spin" positivo, mas ainda não botei as mãos nesse canhenho e ele já me conseguiu transmitir boas vibrações, por alguma razão. E não, não andei a fumar nada. Se quiserem adquirir uma cópia do pequeno livro laranja com direito a gatafunho dos autores, ainda podem passar no Cascais Villa este Sábado e conseguir mais uma prenda para por no sapatinho. Ou na meia. Ou na chaminé. Ou whatever.

E falando em prendas, para aqueles que têm mostrado preocupação com o meu estado de saúde após os 200km de Sábado, reporto com satisfação que tudo vai bem e apenas o meu posterior se queixa um bocado:

"Tenho MESMO que mudar de selim!"

segunda-feira, 16 de dezembro de 2013

Tróia - Sagres 2013 ou Como eu Aprendi a Deixar de me Preocupar e Passei a Amar a Dor


Furgão é para meninos: aluga mas é um autocarro

"Se fosse para trabalhar não estavam aqui a esta hora!" - atirou alguém à multidão reunida no cais de embarque do ferry em Setúbal. Perante a risada geral dos companheiros, o veterano ciclista concluiu com um contundente "ah pois é!". Eram 7:10 de uma fresca manhã de sábado e passados poucos minutos começava o embarque. Para ali estar pronto e equipado tinha saído da cama às cinco da manhã e acreditem que poucas coisas na vida me arrancam da cama a uma hora dessas. Pela frente tínhamos não só a pequena travessia rumo ao Cais Sul de Tróia, como os 202km e muitas horas até à histórica localidade algarvia.

Felicidade é: sair da cama às 5 da manhã e pedalar 200km!

Já a bordo do ferry, houve tempo para descontrair da ansiedade e das preocupações das primeiras horas da manhã: carregar o carro, chegar a tempo a Setúbal, descarregar o carro, levar comida e água para os primeiros km, não esquecer nada, acertar local de paragem com o carro de apoio, etc. Tudo isso ficava agora para trás. Podíamos relaxar e confraternizar com os companheiros de aventura. Conheci um advogado simpático (todo crábonizado) que trazia um speedneedle às costas: tinha mudado em cima da hora para um selim mais confortável na sua Scott, mas teve receio que o seu posterior não se acostumasse e trazia o selim suplente para qualquer eventualidade. Como aquilo pesa menos que uma barra energética, até não foi mal pensado. (Mais à frente descobri que ele voltou de facto ao setup original).

Licras asfálticos dominam o Ferry

Ainda a bordo do ferry comecei a reparar em vários pormenores interessantes referentes ao Tróia-Sagres. É suposto ser um evento com grandes tradições no BTT, afinal a fórmula original do louco passeio criado por António Malvar era a utilização de bicicletas de BTT, mesmo que montando pneu (e outros acessórios) de estrada. Mas à minha volta via-se e sentia-se um enorme domínio da bicicleta de estrada, talvez da ordem dos 80%. Um olhar mais minucioso ao equipamento, às jerseys de clubes, etc, permitia adivinhar que muita desta malta era de facto do BTT. É um facto indiscutível que hoje em dia quase todo o BTTetista empedernido tem também uma estradista asfáltica em casa, e provavelmente muitos concluíram que essa era a ferramenta certa para uma viagem de 202 quilómetros, todos eles em... estrada!

"Ele troca. Olhe que é um clássico!"

Nesta fase já a minha Raleigh atraía curiosos, ajudada pelo facto de um dos meus companheiros estar constantemente a garantir aos ciclistas que passavam, com grandes biclas em crábono, que eu estaria disposto a trocar a minha máquina pela deles. Este clima de boa disposição durou até a rampa descer em Tróia e o desembarque começar. Atrasados por um GPS bloqueado e pelo meu conta km que se recusava a dar sinais de vida, o meu grupo de bravos guerreiros do asfalto foi o último a sair do cais. Eram cerca das oito da manhã e na rotunda que dá acesso à estrada para o Sul reinava o caos. Por todo o lado furgões, carrinhas e até autocarros descarregaram uma confusão de homens de licra, bicicletas e equipamento. Aqueles já prontos a rolar ziguezagueavam por entre estes frenéticos preparativos e o caótico trânsito lento. Começava a viagem.

Mais aço inglês de alta qualidade a bordo: um quadro Genesis Equilibrium

Assim que foi possível acelerar, o ritmo passou para uns 27 - 30 quilómetros por hora e por aí se manteve. A estrada estava cheia de ciclistas, os poucos automóveis eram completamente cercados e tudo o que podiam fazer era esperar. Ao mesmo tempo, havia grupos enormes, autênticos pelotões, a rolar a velocidades bem altas. Um colorido impressionante na estrada, agora que o Sol já brilhava e começava também a distribuir algum calor. Tudo se passou muito rapidamente até Melides, onde fiz a primeira paragem. Não era necessária, mas como vinha em esforço para tentar manter o ritmo dos meus companheiros, resolvi parar e encher o bidom. Até aí nada de especial a assinalar, tinha saltado a corrente logo na partida e a afinação que fiz ao sensor do ciclo-computador foi um bocado à bruta, e agora o íman estava a bater no sensor a cada volta, fazendo um ruído irritante.

Estes componentes andaram quase 100km a bater um no outro. Arggghh!

Até Sines também rolei bem, agora já muito tempo sozinho, não tinha ritmo para os meus companheiros nem para me colar a um dos pelotões que passava, sempre a grande velocidade. O vento começou a fazer estragos por esta altura. Após paragem e novo reabastecimento um pouco depois de Sines, as coisas começaram a descambar. Sentia as pernas pesadas e os músculos doridos e ainda tinha mais de metade do percurso pela frente. Já tinha dificuldade em encontrar posição confortável em cima do selim, o meu posterior já ia dorido. Mais alarmante era uma inédita dor nos joelhos que se ia instalando. Tinha conseguido dormir apenas duas horas e estava a pagar o preço, com juros, da minha falta de preparação. A dúvida ameaçava instalar-se.

Depois de Sines, menos ciclistas e mais carros

Os próximos quilómetros forma muito duros. Via a minha média constantemente a baixar, dos 27km/h passou para 26, depois para os 25 e eventualmente ainda menos. A todo o momento recalculava a hora prevista de chegada a Sagres e percebia que corria sérios riscos de chegar após o pôr do Sol. Ao quilómetro 120 o GPS morreu, as pilhas nem duraram meio dia. Estava a rolar sozinho há algum tempo, a minha média continuava a baixar, e agora tinha receio de me perder. Psicologicamente estava a ir abaixo, as pernas não respondiam, dei por mim a subir um troço com uma inclinação suave a 12km/h, numa mudança super leve. Mesmo assim estava a custar como se fosse a subida para a Torre. Parei.

E tirei esta foto:


E esta:


E mais esta:

Mo-rreu! Felizmente o jurássico ciclocomputador é mais fiável

Faltavam cerca de oitenta quilómetros, mas podiam ser mil. Tinha que por as ideias em ordem. Estive ali uns cinco minutos e quando arranquei estava decidido a chegar ao fim nem que fosse de gatas. Fui-me concentrando na paisagem, nas pequenas trocas de palavras com outros ciclistas, em que a norma era o incentivo mutuo. Havia boas energias por aquela estrada, e também alguma comédia (e loucura). Muita gente elogiou a minha bicicleta ou fez humor com ela (não sou ciumento). Eu era o "amigo vintage", a Raleigh era "a relíquia" e "à maneira". Pelo caminho encontrei muitos personagens curiosos e montadas invulgares. Havia bonitas sigle speeds e fixies (chamem-me o que quiserem, mas é desmoralizante como o camandro ser ultrapassado por uma single speed!), bicicletas de estrada quase da idade da minha ou mais velhas, várias dobráveis, entre as quais uma Dahon toda kitada, e uma Bromptom completa com todos os extras, incluído uma generosa mala Brompton montada na frente, cheia até rebentar.

Paragem para WC, porque tudo o resto que seja preciso já deve estar naquela mala!

Substitui as pilhas do GPS. Sobrevivi não sei bem como à única subida realmente dura da viagem e fui fazendo o meu caminho para Sul, mas o pôr do Sol aproximava-se rapidamente e eu ainda tinha muito para andar. Não havia nada a fazer senão insistir. Para ajudar à festa, a segunda metade do percurso é mais fértil em sobe-e-desce, o que não era inteiramente mau. Depois da subida podia sempre descansar um bocado na descida, mudar a posição do corpo e deixar rolar em roda livre, coisa quase sempre impossível no resto do percurso. A "relíquia" tem uma limitação nestas situações: uma vez comprometido numa descida rápida, não me atrevo a tirar as mãos do guiador para colocar mudanças mais pesadas, e assim não aproveitava ao máximo esses momentos em que tinha a ajuda da gravidade. A colocação das alavancas não se presta a "trocas de caixa" rápidas, pelo que muitas vezes nem tentava e rolava quilómetros e quilómetros na mesma mudança.

Funcionais e precisas q.b. Rápidas não são
 
Entretido com o caminho com mais curvas e subidas e descidas, já no Algarve, os quilómetros foram passando. Após uma última paragem a 20km do final, arranquei com a faca nos dentes na tentativa de não ser apanhado na estrada quando escurecesse em definitivo. Recuperei algum tempo, mas foi em vão. Acabei na escuridão total, a rolar a 30km/h na berma da estrada nacional. Mais uma vez um companheiro do pedal foi a minha salvação, um BTTista com luzes permitiu-me seguir com alguma segurança, na roda dele, até à entrada de Sagres.

Basicamente, foi isto

Exactamente dez horas depois de ter começado, pelas 18:00h entrava em Sagres, a localidade mergulhada na escuridão e invadida por um mar de crábono e homens de licra. O ciclocomputador marcava 198,32km, a diferença para o total de 202km do track semi-oficial justificada pela localização actual mais a Sul do cais de Tróia. Ao todo eu tinha parado uns muito longos 78 minutos, mas sem isso acho que nem teria chegado. A minha velocidade mérdia ficou-se pelos 23,0km/h, o que não está mal para quem não treinou nada e foi de "clássico" para o Algarve.

Alguém comentava que ir para Sagres de duas rodas com motor provavelmente ficava mais barato. Pode ser verdade, porque eu ao longo do percurso consumi isto:

  • 2 Sandes de Queijo
  • Uma Empada de Galinha
  • 4 Barras de Chocolate e Banana
  • 1 Barra de Cereais
  • 4 Pacotes de Gel
  • 1 Banana
  • 4 Bidons com Bebida Iso-coisa
  • Pedaços de Manga
  • Frutos Secos
Em litros aos 100km deve ser menos que uma pick-up V8 americana, mas mais que um Prius. Voltando a questão que tinha colocado anteriormente:

É possível uma pessoa normal, sem preparação, meter-se a pedalar uma distância de 200km, que envolve um esforço continuado de um dia inteiro, e chegar ao fim vivo?

Sim.

E fazê-lo numa bicicleta qualquer?

Sim.

Se me perguntarem se vai ser divertido, depende de como lidem com o esforço prolongado e com um bocadinho de dor. Eu gostei. Mas agora tenho que me ir embora, estão ali à minha espera para eu assinar os papeis para o transplante do escroto.

quinta-feira, 12 de dezembro de 2013

Na medida certa

A foto é minha, a bicla nem por isso

Então, estão bons? Fui ali comprar tabaco, mas fiquei um bocado indeciso, afinal há muitas marcas, aquilo faz mal à saúde e com o imposto ainda custa dinheiro. Acabei por não trazer nada. Mas já cá estou. E regresso com um dos temas fracturantes da comunidade: um "bike fit" serve ou não para alguma coisa?
 
Desde já esclareço que não tenho grandes respostas, esse tipo de serviço público deixo para outros. Mas a minha questão surge de ter metido na cabeça que ia participar no Troia-Sagres deste ano. E mesmo sem ter treinado absolutamente nada (o próprio conceito de treino é um bocado incompatível com a minha ideologia utilitária) achei que seria engraçado levar a minha bicicleta do Cretáceo Superior para tornar as coisas interessantes.

"eu como crábono ao pequeno almoço"

O problema é que a velha Raleigh sempre foi um bocado grande para mim (ou será que não?) e tenho dificuldade em sentir-me confortável aos comandos por períodos prolongados e distâncias maiores. Nunca tinha perdido muito tempo a afinar a bicla para a minha envergadura, limitei-me a fazer uns ajustes aqui e ali e toca a rolar. Desta vez resolvi ser um pouco mais metódico.

Várias empresas oferecem entre nós este serviço

Como não queria pagar mais dinheiro do que vale a bicicleta num bike-fit profissional, fiz uma pesquisa e usei os dados de uma das calculadoras automáticas que encontrei online. Depois de inserir todas as minhas medidas, do antebraço ao número dos sapatos e do esterno ao escroto (e o trunk, já mediram o vosso trunk?), fiquei com o intervalo de tamanhos para as principais dimensões da minha bicicleta de estrada. A primeira surpresa foi de que a minha bicla não é demasiado grande para mim! Parece que nos anos oitenta eles não eram adeptos de mexer muito nos quadros consoante o tamanho. Basicamente a minha bicla é mais alta, o resto pouco muda. Assim, se o meu tubo do selim mede 63cm, o tubo superior mede uns 58 civilizados centimetros, aparentemente adequados à minha envergadura. O mesmo verifiquei para o tamanho do avanço e demais proporções básicas.

Fácil e de borla. Mas e se não bater tudo certo?

Fixe! Mas quando chego à parte da distância da ponta do selim ao guiador, dá que o tenho que recuar um bocado. E faz sentido, o selim está de facto algo para a frente. Acontece que quando faço isso, o ângulo dos joelhos com o eixo do pedal fica demasiado atrasado. O que é mau. Raios, e agora?   



Se calhar agora dava jeito ter acesso a um daqueles especialistas e seus serviços dispendiosos. Mas sendo assim tive que fazer a coisa a olho, chegar a um compromisso. Nem a posição dos joelhos ficou perfeita, nem a distância do selim ao guiador. Basicamente não ficou muito diferente de como estava tudo antes. Será que é a bike que está mal desenhada? Ou sou eu?

Não sei nem tenho tempo de descobrir. O Tróia-Sagres, essa Meca do ciclismo de inverno em Portugal, é já este sábado. Podia levar a BTT com pneus de estrada, como manda a tradição, mas isso seria demasiado fácil. Ou será difícil? Embora pese tanto como um Renault Clio e tenha quase a idade do Mário Soares, a minha Raleigh é afinal de contas uma bicicleta de estrada. E isso deveria tornar os 202 km do percurso mais acessíveis. Esta é aliás uma distância inédita para mim, mas até conheço parte do percurso e já me aproximei dessa marca uma vez.

É já ali.

A questão que se levanta são na verdade duas: pode um tipo normal, sem qualquer preparação prévia, pedalar 200 km num dia? E fazê-lo numa bicicleta com mais de 30 anos que não lhe encaixa particularmente bem? Eu acho que sim. Respostas definitivas em breve. 

domingo, 20 de janeiro de 2013

O regresso do Macho Alfa... Armstrong

Não há pachorra.

Toda a publicidade é boa publicidade?


Quero dizer, um tipo até consegue sobreviver ao anunciado Apocalipse, ao Natal e a todos os jantares e excessos da quadra festiva, mas posso não sobreviver à avalanche mediática que rodeia o ex-campeão texano, o espectacularmente auto-centrado Lance-Macho-Alfa.

Como não podem ter deixado de reparar, o vencedor, errr, participante de 7 voltas à França foi à televisão confessar que sim senhor, tinha tomado EPO, cortisona, testosterona, hormona do crescimento e transfusões sanguíneas em todas as provas em que triunfou. Que tinha, para manter o segredo e o estatuto, processado e intimidado mais pessoas do que se conseguia lembrar.

Tipo sim, cilindrei umas pessoas, mas podemos falar do meu regresso?


Para quem não acompanha o assunto, chega a parecer estranho que os jornais dediquem tanto espaço a um mero ciclista apanhado nas malhas do doping ("eles não andam todos metidos nisso??"). Mas a história de Lance Armstrong é mais do que a de um atleta de alta competição apanhado a aldrabar. O Lance-Macho-Alfa ultrapassou há muito as fronteiras do ciclismo e do desporto, é uma celebridade mundial, um guru da superação para doentes de cancro, uma inspiração para os praticantes de qualquer desporto e uma referência para quem procurava heróis no nosso tempo.

Ou melhor, era todas essas coisas. Pelo menos para mim, de onde eu estou a ver a coisa, este é um homem que mentiu compulsivamente, de uma forma raramente vista. Um tipo que processou a torto e a direito e chegou a sacar dinheiro a jornais que se atreveram a beliscar a sua lenda. Um psicopata que literalmente se escondeu atrás de crianças com cancro, que arruinou a carreira de outros ciclistas que se atreveram a questionar a narrativa oficial. Valia tudo, a intimidação, os processos em tribunal, as humilhações públicas em conferências de imprensa, com o propósito não só de manter a máquina de ganhar dinheiro a funcionar, mas com uma aparente genuína intenção de magoar, de prejudicar aqueles que se atreviam a questionar o grande Lance-Macho-Alfa.



E este semi mea culpa calculista não convence ninguém. Foi feito no cenário escolhido a dedo da tia Oprah, em vez de nos gabinetes da agência anti-dopagem norte americana, que adoraria ter uma conversa franca com ele, ou no banco dos réus de um tribunal, onde ele ainda pode ter que se sentar, por perjúrio (tinha jurado que nunca tomou substâncias dopantes) ou fraude (meteu uma empresa em tribunal para ganhar um prémio desportivo de vários milhões ao qual não tinha direito). Não pediu desculpa aos fãs, não pareceu genuinamente arrependido de coisa nenhuma e a sua principal preocupação declarada é ser perdoado para voltar a competir, ou seja, voltar a ganhar milhões em patrocínios, porque aos 41 anos já não será para vencer coisa nenhuma.

Por isso, Lance-Macho-Alfa, podes meter a pulseira laranja num sítio que eu cá sei e fica com as palavras do imortal George Carlin: