domingo, 17 de janeiro de 2016

Tróia-Sagres 2015: a maldição do licor dourado

A caminho do Sul

 Sabem como é, um tipo vai a andar pela rua e de repente tem a sensação de que alguma coisa não está bem. Que há ali alguma coisa errada. Pois naquela noite havia definitivamente algo estranho a passar-se, e já estava quase a chegar em casa quando dei conta que... estava descalço! Um considerável esforço de avaliação permitiu também registar que a roupa que tinha vestida não era minha e que a minha memória das últimas horas tinha inúmeros e vastos buracos.

Só faltam 200 km!


Enquanto tentava avaliar a magnitude dos estragos daquela noite de fim de verão (Onde diabos estava o carro? Tinha-me atirado à amiga que me veio trazer? Que figuras teria feito? E porquê estava o meu telemóvel cheio de água??), uma recordação viria sobrepor-se a todas as outras inquietações: tinha aparentemente passado boa parte do tempo a convencer toda a gente disposta a escutar-me a ir ao Tróia-Sagres. E pelo caminho comprometera-me irrevogavelmente também a participar. Outra vez. Opsss.

Para afastar pensamentos negativos e conseguir adormecer nessa noite fatídica, facilmente me convenci de que teria imenso tempo para treinar, até Dezembro. E que até lá, além de alcançar a minha melhor forma de todos os tempos, recrutaria uma equipa de apoio constituída exclusivamente por belas Dinamarquesas em idade fértil, que me faria relaxantes massagens e distribuiriam cerveja belga a intervalos regulares pelo Alentejo.  

No Ferry, manhã cedo


Fast-forward uns meses, para a nacional 120. Para a realidade. O progresso era penosamente lento, os quilómetros pareciam não passar, a minha média era a pior de sempre, a descer já dos 20km/h. Uma chegada de noite anunciava-se, impossível de evitar. O tempo estava instável, com vento frontal boa parte do caminho e já tinha até chovido. Com o conforto de meses de distância do evento, chegou a estar previsto fazer os 200 km do percurso numa dobrável de supermercado emprestada, só por graça, e ainda voltar a tempo de ir à festa de Natal de empresa, nessa mesma noite. A realidade era algo muito diferente.

Enquanto uns descansam, outros nem por isso...


Na verdade, àquela hora muita gente já tinha cumprido o histórico percurso, o meu companheiro de aventura, por exemplo, relaxava em frente ao nosso ponto de encontro. Registos GPS de cinco horas e qualquer coisa de caminho estavam naquele momento a ser uploadados para o strava.

Para mim, o descanso ainda teria que esperar. Tinha vindo de BTT este ano, a velha Kona prometia mais conforto e era a máquina certa para o regresso ao Tróia-Sagres. Porque este ano eu tinha a mesma idade do António Malvar aquando da sua primeira e inspiradora travessia, feita, como toda a gente sabe, numa bicicleta de montanha. Parecia a coisa certa de se fazer. Infelizmente, pouco mais tinha treinado que na aventura de 2013 e estava claramente a pagar o preço.

É verdade que tinha perdido uns dez quilos de peso desde 2013, mas a pior aerodinâmica da posição da Kona e a falta de treino pareciam ser factores mais relevantes. Desde o início tinha sido quase impossível manter as médias que assegurariam a minha chegada ainda com luz do dia. Tinha começado a pedalar às 08:00, com a chegada do mesmo ferry de à dois anos. A supremacia da bicicleta de estrada era este ano avassaladora, diria mesmo que 90% das biclas eram estradistas mais ou menos rápidas e as BTT cada vez mais difíceis de encontrar no longo caminho para o Algarve.

O dia estava excelente, para Dezembro. Estava frio, mas o Sol brilhava e aquela hora da manhã tudo parecia ainda possível. A navegação dos primeiros km, rodeado do caos das carrinhas e material, equipas inteiras a reunir-se e preparar-se na berma da estrada, fez-se sem incidentes. O percurso até Sines não teve história. Não houve stresses com enlatados e o dia luminoso convidava à boa disposição. A camaradagem entre ciclistas na estrada está viva e recomenda-se. Era inegável que ia mais lento que à dois anos e esse facto foi-me imediatamente recordado na primeira paragem ao km setenta e picos. O meu companheiro que tinha arrancado comigo levava agora uma hora inteira de avanço!     

A coisa não melhorou ao longo do dia. No fim, apesar de todo o apoio dos pais do João, que abdicaram de acompanhar o filho para me apoiarem a mim, apesar do meu peso reduzido, apesar da minha experiência e do meu esforço, a noite apanhou-me na serra. Sim, era noite cerrada e eu ainda me arrastava pela estrada deserta, perdido entre montes e vales, a quilómetros do destino.

O carro vassoura mais espectacular dos últimos tempos

Perdido num mundo de dor, no meio de uma épica batalha mental comigo mesmo, de repente a escuridão foi afastada por um par de potentes faróis. Atrás de mim, com um rugido, um roadster desportivo iluminou a estrada, afastou as dúvidas e mostrava agora o caminho para Sagres, o caminho para a glória e para a salvação. Eram outros amigos, que vinham fazer a rodagem de um MX-5 ao Algarve e pelo caminho salvar este vosso escriba.

A foto da praxe, com a ajuda de outros retardatários

Assim foi. Com este incentivo, e esta luz, rodei a até Sagres numa onda de boas energias e boa vontade. Saí da bicicleta meio morto, mas ao mesmo tempo renascido. Depois de jantar já estava como novo e anotei, mais uma vez, se falta fizesse, que quem tem amigos tem tudo.