quinta-feira, 7 de outubro de 2021

Crónicas do Queijo da Serra: a Montanha


Está escuro e silencioso. E um pouco fresco. Os meus movimentos estão limitados por umas paredes de material sintético e o que parece ser um cobertor muito apertado... Preciso de alguns segundos para recordar onde estou: na minha tenda pouco maior que um sarcófogo, no parque de campismo do Fundão. É a madrugada do quarto dia de viagem à Serra da Estrela, o dia da subida à Torre. 

São quatro da manhã, e embora eu sinta que já descansei o suficiente, não há luz ainda e não posso fazer nada senão esperar. Isto dá-me a ideia de pegar no telemóvel e procurar alojamento. Embora esteja a aguentar bem o frio daquela noite, continuo sem confiança de conseguir suportar a próxima dormida a 1500m, no local previsto, o Covão d'Ametade. Rapidamente faço uma reserva para a pousada da juventude da Serra da Estrela e nem posso acreditar na minha sorte. Nas semanas anteriores o local aparecia sempre sem vagas. Sinto que me foi retirado o um enorme peso de encima, agora posso concentrar-me apenas na subida. E assim me deixo voltar a cair num sono tranquilo.

Quando volto a acordar são nove e meia: um desastre! Sei que a manhã está perdida, só levantar o acampamento requer cerca de uma hora. Mas sigo os passos habituais, tão depressa quanto consigo, não há alternativa.  Trato da higiene pessoal, recupero a roupa de ciclismo que estava estendida, desmonto a tenda e arrumo tudo nos sacos, preparo os bidons com água do parque e pó para bebida isotónica que carrego desde casa. Aproveito também para olear a corrente e dar uma lavagem rápida na bicicleta.


Para cima!


Rolo para fora do parque de campismo depois das dez e meia, e ainda tenho que ir procurar pequeno almoço no Fundão, porque no parque fui avisado que não haveria. Ao pretender entrar no primeiro café que encontrei, descubro que não tenho máscara. É grave, porque vou precisar dela mais vezes. Em viagem, é preciso ter as coisas bem arrumadas, nos sacos, para não haver surpresas e uma pessoa poder concentrar-se na pilotagem. E a perda de itens imprescindíveis paga-se caro. Por exemplo, sem telemóvel, ou GPS, ou a carteira, acabou-se a viagem. A situação não é assim tão grave, mas sinto que estou de alguma forma a perder o controle. É Domingo, está tudo fechado. A tentar localizar uma farmácia de serviço, deixo cair o telemóvel no asfalto, com certa violência. Ele sobrevive e eu faço um esforço por me acalmar. Devo conseguir encontrar uma máscara nalgum lado. 

E de facto encontrei, mas foi preciso ir a uma loja "do chinês", do outro lado da cidade, e comprar um pacote de 50 máscaras. Regresso ao café e descubro que o padrão de comida em doses para criança, do dia anterior,  se mantêm: a torrada que me chega é minúscula e daquele pão que só tem ar. Olho à minha volta e constato que ninguém está a comer. Os outros clientes estão quase todos a beber vinho, cerveja e coisas mais fortes. Ainda não é meio dia. No parque, o responsável também parecia um grande entusiasta da cerveja. Acho que o Fundão merece outra visita, mas se me perguntarem agora o que se faz no Fundão, eu diria que é beber. Beber e andar em excesso de velocidade em carros do Tuning.

  

Uns metros acima de Unhais da Serra


Não posso lidar com mais atrasos e, mal comido, faço o meu caminho para fora da cidade. A ideia é atacar a serra pelo Sul. A estrada não tem muito trânsito e até é rolante. Lá há uma subida ou outra, mas o percurso inicial parece muito pacífico. Eu sei que ainda vou ter muito que subir, mas agrada-me ver os quilómetros a passar sem grande esforço. Mas depois chegamos a Unhais da Serra. E o GPS envia-me por uma encosta com uma inclinação absurda, onde vou apanhar a estrada que verdadeiramente sobe para a Serra. A partir deste momento, nunca mais paro de subir.


Um pouco de gravel


Eu tenho uma pedaleira sub-compacta e uma cassete enorme (30-46 e 11-34) e não tenho medo de usar todas as mudanças. Mas mesmo recorrendo a uma combinação 30-34, que eu raramente uso, a estrada só podia ser enfrentada subindo aos zigue-zagues, para combater a inclinação. A velocidade era penosamente baixa, muitas vezes um dígito apenas, e o Sol brilhava agora com toda a força sobre as escarpas desnudas da serra. Eu estava vestido para atacar a montanha de manhã e naquela hora de almoço tinha a roupa errada, o estômago vazio e demasiado peso na bicicleta para o que estava a fazer. Um grupo de ciclistas de estrada passou a descer e pude constatar um certo ar de pena com que me contemplaram. Mais à frente rebentei, não conseguia respirar, e tive mesmo de empurrar a bicicleta.

 

Paragem para almoço. Reparem na mudança selecionada


Mesmo apeado, nunca deixei de caminhar, todos os metros contavam. Aproveitei um pouco de sombra para me restabelecer e voltar a montar a bicicleta. As vistas eram espetaculares, mas também intimidantes, já que permitiam antever o muito que ainda estava para vir. O plano inicial era almoçar na Torre, mas isso estava agora claramente fora de questão. Por isso decidi parar para comer, saindo do Sol por um bocado. Aproveitei uma casa abandonada, junto ao local onde a subida passa a ser de gravilha, e cozinhei um almoço com o fogareiro, provavelmente de forma ilegal, pois duvido que seja permitido fazer fogo no Parque Natural.   

Acabei a refeição de massas desidratadas com um belo café e fiz um ponto da minha situação. Tinha pouca comida,  também já pouca água, não podia aliviar peso e ainda faltava muito para a Torre. Eu queria chegar antes do frio que vem com o Sol baixo, e também queria ter a certeza de estar na pousada antes de escurecer. Tudo parecia perfeitamente possível a velocidades de bicicleta, mas muito duvidoso se tivesse que andar. Como de costume, a solução era parar de pensar nas dificuldades e fazer o que tinha de ser feito: continuar a subir!


O caminho já feito...


Depois do almoço, com a altitude e a hora mais avançada, o calor foi deixando de ser um problema. A estrada continuava com a sua inclinação impossível, por vezes pejada de pedras caídas e os zigue-zagues constantes eram a única forma de prosseguir.  A situação melhorou ao sair da Nave de Santo António e entrar na N339. Nesta estrada as inclinações são um pouco mais suaves, mas aqui tinha que lidar com a presença de outros seres humanos. Era Domingo e havia muitos carros na estrada. Felizmente, todos civilizados, e a estrada, bem sinalizada, oferece muitas oportunidades de paragem, para admirar as vistas impressionantes. 


...e o caminho por fazer


Por aqui fui subindo, e subindo e subindo. Se tiverem curiosidade em saber o que vai pela cabeça de um tipo durante esses momentos de esforço prolongado, eu esclareço. Costumo focar-me num objectivo próximo, a paragem seguinte, um reabastecimento, um cruzamento onde vou apanhar outra estrada. Mas também por vezes penso em algo totalmente diferente, e mais abstrato: uma música, o argumento de um filme, algo que tenha lido. E naquele dia, por alguma razão deu-me para recordar a letra de uma musica digamos, de nicho, sobre uma particular tendência que afectava o mercado de motos clássicas: isto

Foi assim que os últimos quilómetros de subida foram feitos recitando Hugo Cardoso e sua fantástica Vespa Azul Cueca. Talvez desejasse ainda ter a minha vespa para subir à Torre, em vez de me meter a fazer aquilo de bicicleta. O certo é que estrofes como esta ecoaram pela serra: 

Foste bem comido

pelo garageiro,

teu poio polido

custou bué da dinheiro.

Quando a água realmente acabou, encontrei uma fonte de água fresca, deliciosa, na beira da estrada. A montanha também tem o seu lado generoso. Aquilo fez maravilhas pela moral, mas eu funcionava já só por pura teimosia. Numa das últimas paragens, um automobilista bem intencionado comentou alguma coisa como "com preparação tudo se consegue" ao encontrar um viajante ciclista por aquelas paragens. Não pude deixar de pensar que a minha "preparação", com visita rotineira a locais como a serra de Carnaxide (altitude máxima 211m) ou o Monsanto (altitude máxima 277m) se calhar tinha ficado curta para uma subida quase até aos 2000m, com a bicicleta carregada, depois de 4 dias a pedalar. 


No topo do mundo


Mas o esforço teria recompensa. As redomas dos antigos radares da Força Aérea há algum tempo que surgiam visíveis desde a estrada, permitindo estimar a distância para o final. E o final é mesmo um pouco anticlimático, pois o "cume" é na realidade um amplo planalto em altitude. A Serra da Estrela não tem um pico que se destaque naquele ponto.  



Marco do ponto mais alto, 1993m




Antigo Radar da FAP




Os ski lifts estavam em actividade



Não sei quem achou que um "centro comercial" a 1993m era o que a economia local precisava, mas não faz bem o meu estilo. Ainda tentei dar uma de turista, e indagar sobre o preço de algum afamado queijo, mas a forte presença de humanos levou-me a comprar apenas uma cerveja celebratoria e do queijo fiquei apenas com mémorias do cheiro intenso.

Cá fora as temperaturas estavam a descer rapidamente e já não se conseguia estar à sombra. Dei uma volta a pé, para absorver a atmosfera do local, desentorpecer as pernas e pensar nos próximos passos. A viagem não terminava ali, tinha planos para os próximos dias, mas a verdade é que aquele era sem dúvida o objectivo máximo. Porque será que damos tanta importância à montanha? O que nos leva a querer "conquista-la?" 

Para mim o mais impressionante é o silencio. Um silencio imponente. A magnitude e antiguidade do local remete-nos para a humildade e a introspecção. Por uns momentos, por fim, é possível encontrar um pouco de paz.      








Na Pousada








Rumo a Manteigas












Vale Glaciar



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