quarta-feira, 6 de outubro de 2021

Crónicas do Queijo da Serra: o Caminho

Caminho de Fátima/Tejo/Santiago

O velho sentado à mesa da modesta esplanada do café suburbano acompanha o meu progresso. A sua cabeça, de pele curtida pelo Sol de muitos verões, desde século e do outro, segue o movimento que descrevo, avançando rápido pela estrada. O seu rosto atrai a minha atenção, e os nossos olhares cruzam-se por breves instantes. Com uma dignidade que se lhe diria natural, o velho fixa os seus olhos em mim, antes de me cumprimentar com um contido, mas aprovador aceno da cabeça. Uma espécie de assentimento. Um reconhecimento de que ali vai outro ser humano, aparentemente em busca de algo importante.


Para os lados de Santarém


Não sei precisava de sentir esta espécie de aprovação masculina, mas foi o que marcou o início de viagem, naquele que era um dos derradeiros dias do verão. O Dentuça e eu tínhamos como sempre arrancado de casa, no Isaltinistão, estávamos às portas de Alverca, e propúnhamo-nos alcançar o ponto mais alto do Portugal do continente Europeu, antes que a estação chegasse ao fim, e com ela a temporada de viagens e aventuras de duas rodas.  

O planeamento da viagem tinha proposto demasiados quilómetros de N10 rumo a Norte, uma nacional estreita e sempre com muito trânsito, nomeadamente de pesados. Optei em vez disso por apanhar o início do caminho de Fátima junto ao Trancão, à saída de Lisboa, tal como aquando da Volta a Portugal, e por lá seguir até Santarém, onde tomaria um caminho por estrada, e junto ao rio Tejo, até Constância, onde pernoitaria. 

Neste primeiro dia, com sol firme e um percurso practicamente plano, o progresso não foi difícil. Tinha realizado um esforço por reduzir o peso na bicicleta, retirando tudo que podia dispensar, por exemplo colocando o material da tenda directamente na bolsa do guiador, dispensando o seu saco, bem como algumas estacas e o chão separado que tinha. Reduções como esta permitiram perder quase 2Kg de peso total.

 

O set-up do costume. Com algumas novidades


Por outro lado também aumentei o peso em alguns componentes e itens. Por exemplo, montava uns pneus Gravelking de 38mm, os mais largos que já tinha experimentado, mas que se revelaram tão confortáveis que não resisti a utiliza-los nesta ocasião. Pesam cerca de mais 50gr, por unidade, que os seus congéneres de 32mm usados na viagem a Madrid. Alem das dimensões, o material utilizado também é diferente, sendo uma borracha mais elástica, que dá a côr da moda às bordas do modelo mais largo. O facto de pretender acampar todas as noites e ter previsto a passagem por altitudes elevadas obrigava também a alguma contenção na altura de fazer as escolhas do que iria ou não levar na viagem.

   

Constância


O caminho de Fátima estava deserto, como é costume, mas ainda me cruzei com alguns caminhantes estrangeiros, de pele pálida e grandes mochilas de aspecto sofisticado. Não falei com ninguém, mas desconfio que sejam peregrinos de Santiago, naquelas paragens o caminho é o mesmo. Conhecendo o percurso, não senti grandes dificuldades nem encontrei surpresas. Mas após 80km tinha umas fortes dores nos pulsos, que fui ignorando até que já não tinha posição em que fosse tolerável continuar. A solução foi tirar pressão aos pneus, aqueles quilómetros a bom ritmo na gravilha, mas com pressão para asfalto, estavam a passar factura. Felizmente isso solucionou o problema e não houve sequelas. Ao fim do dia, 152km depois, estava acampado em frente ao rio Zêzere, num pequeno parque de campismo em Constância. Enquanto o meu fogareiro aquecia água para um arroz com atum retemperador, uma senhora veio oferecer-me umas enormes fatias de melão, que estava simplesmente divinal. Partilhei depois a minha refeição quente com os gatos do parque e sensibilizado com aquela simpatia de estranhos, adormeci a pensar na montanha e no que me faltava para lá chegar. 

   

O Zêzere ali ao lado


O segundo dia seria mais curto. Por causa da logística dos alojamentos, tinha planeado etapas com menos quilómetros dali em diante. A estrada à beira do Zêzere continua lindíssima, e na manhã de um dia de semana, estava também deserta. Temperatura amena e pouco relevo também ajudavam ao progresso. Mas durou pouco. Portugal é realmente um bocado enrugado. Deve ser uma chatice para invadir. 

O meu trambolho de GPS levou-me até Proença-a-Nova, em vez de directamente para o parque de campismo próximo, cuja morada eu tinha inserido. É sempre chato fazer mais uns quilómetros inesperados, mas não era longe, a estrada era divertida e ainda aproveitei para fazer umas compras na cidade.


Praia fluvial de Aldeia Ruiva


O Parque de Campismo de Aldeia Ruiva, o destino do segundo dia após apenas 67km, apresentava-se elegante, mas vazio e fechado. Por telefone consegui autorização da câmara para pernoitar. Tudo indicava que teria uma pacífica noite em solitário, num parque muito engraçado, ao lado de uma praia fluvial. Mas não tardaram a chegar pessoas, e elas não pararam de chegar até depois das onze da noite. Havia muito ruído, que é aquela coisa que mais detesto no campismo. Para compensar, tinha o luxo de poder jantar ao pôr do Sol, numa fantástica esplanada que havia mesmo ao lado do parque, e assim poupar mantimentos para a serra.


Muito frio em Aldeia Ruiva


Naquela segunda noite não dormi muito bem. Ao frio e ao ruído dos outros campistas havia que somar o barulho de um IC próximo. Pelo menos tinha pequeno almoço ali à porta, mais uma vez na esplanada com vista.  Pela frente tinha mais uns montanhosos quilómetros, desta vez apenas 87, mas com cerca de 1800m de acumulado de subida, o que não pude deixar de sentir nas pernas. Mas não havendo muito calor, a coisa foi-se fazendo. 

Sim, é por aqui!


O GPS continuava a dar-me algumas surpresas, só para a coisa não ficar aborrecida. Insistiu que eu saísse da estrada, para subir uma encosta de mais de 25% de inclinação, com piso de calhaus do tamanho de punhos. Imagino que era um atalho, mas aquela subida de umas centenas de metros custou mais que muitos quilómetros em estrada. O GPS meteu-me também pelo meio de Souto da Casa, por um caminho empedrado onde não tive outro remédio que não fosse desmontar. Um local ajudou-me a regressar à estrada para o Fundão, que estava já muito perto.


E também é por aqui


O destino na terceira noite era o belo Parque de Campismo do Fundão. Um espaço amplo, com muitas arvores e sombra. E absolutamente decadente, decrépito no que toca a instalações e cheio de moscas. Mas não é o luxo que me move, e o local prometia uma noite bem mais tranquila que a anterior. Além disso tinha um cafezito onde se podia jantar, embora isso aparentemente tivesse de ser negociado, porque a cozinheira não estava, era fim de estação e as pessoas dos parques tinham ocupações de inverno às quais estavam a começar a regressar. 


Do Fundão vê-se uns montes...


Apesar de uma negativa inicial, e talvez devido a vários turistas terem colocado a mesma questão, lá se arranjou uma cozinheira e houve direito a jantar. Já comi demasiadas vezes em parques de campismo e não estava à espera de nada muito aliciante. Mas depois de não ter realmente almoçado, vivendo à base de barras e frutos secos, o bitoque minúsculo que me serviram esteve longe de impressionar. Normalmente nunca como sobremesa, mas desta vez pedi melão, pois ainda tinha fome. Veio uma fatia fininha, uma coisa risível, sobretudo depois da generosa oferta da primeira noite. Pedi a outra sobremesa disponível, e veio um pudim flan cheio de ar, com o diâmetro pouco maior do que uma moeda. Dei-me por vencido e fui dar uma volta antes de me ir deitar.

  

Parque de Campismo do Fundão


Na tenda, de auriculares, a ouvir um podcast que tinha descarregado para o telemóvel, tinha vestido quase toda a roupa de que dispunha, para evitar o frio da noite anterior. Até a toalha, já seca, tinha trazido para colocar sobre as pernas e assim aumentar a eficácia do meu saco cama. O pior era que a noite seguinte seria passada mais de 1000 metros acima, e eu não estava certo de ter condições para aguentar a equivalente descida de 10ºC. No papel, as temperaturas previstas pareciam suportáveis com o que tinha trazido, mas na práctica não estava a ser assim. Este problema não me deixava esquecer ainda outra pequena questão: até aquele momento não era para mim seguro que conseguisse, com a bicicleta carregada, subir a montanha mais famosa do ciclismo Português. Envolto nestes pensamentos, mas confiante nos meus cuidados com o arrefecimento nocturno, depressa o cansaço se fez notar e adormeci profundamente.

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