segunda-feira, 11 de outubro de 2010

Do peso das palavras

"Comboio abalroou viatura e provocou dois mortos", noticiava hoje o Público.

Ninguém questiona este tipo de cabeçalhos. É uma forma muito comum de apresentar um incidente deste tipo. Não sou nenhum Chomsky, mas conheço a importância das palavras. Não é por acaso que o título não diz por exemplo "Utentes de linha X sem serviço devido a acidente com automóvel" ou algo como "Idiota contorna cancela e ignora avisos sonoros, provocando colisão com comboio". 

E não diz isso porque a vítima é sempre o automóvel. Sempre. O comboio não pode desviar-se, não pode travar. Mas a culpa é dele. A vítima é o automóvel e os seus ocupantes. Mesmo que o condutor do veículo motorizado tenha ignorado as regras e os avisos, como foi o caso. Mesmo que outras pessoas tenham ficado feridas ou sido prejudicadas pela colisão. Ele é que foi "albarroado". O automóvel. Nada mais interessa.

É também esclarecedor reparar como os noticiários fazem a contagem de viaturas atingidas quando há um temporal. Os automóveis danificados ou destruídos nestas situações são contabilizados com grande detalhe, como se de vítimas, pessoas, mortas ou feridas, se tratasse.

Recentemente a queda de um edifício em Gaia teve ampla cobertura televisiva. Foi dado grande destaque, em todos os canais, às viaturas esmagadas, com planos dramáticos dos pópós envolvidos. Isso era sem dúvida mais importante do que o facto de um edifício ter ruído! E menos ainda tentaram as TV's explicar a razão dessa ruína.

E quando há um acidente com uma bicicleta, o que é que costuma acontecer? Será que os meios de comunicação usam expressões como a "viatura abalroou ciclista" Claro que não. Quando noticiam um acidente entre um veiculo motorizado e um ciclista as expressões vão normalmente no sentido de responsabilizar o ciclista. Coisas do tipo "Ciclista não terá visto o automóvel" são as mais vulgares.

Os paradigmas não surgem por acaso. Meias verdades e linguagem tendenciosa, repetidas vezes sem conta, solidificam na cultura de um povo factos que não têm fundamento. É também assim com as noções do automóvel como objecto libertador, imaculado, incapaz de qualquer mal.

1 comentário:

  1. Então? Mas o meu amigo não sabe que o automóvel é a reencarnação de Jesus? É ele que nos vai trazer o progresso, o encurtamento de distâncias, a mobilidade dos nossos concidadãos, mais emprego e até, quem sabe, transformar petróleo em vinho! Respeite o seu libertador, seu ... ciclista...Satanás!

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