domingo, 10 de julho de 2011

O Tour é uma aberração



Hoje chegou ao fim a primeira semana do Tour de France. Para qualquer pessoa que se interesse por ciclismo, utilitário ou não, esta prova de estrada é uma referencia. Pela sua história, pela mística criada ao longo dos anos, Le Tour é incontornável. Tenho no entanto algumas dificuldades em perceber a ligação que muitas vezes se tenta estabelecer entre uma prova de competição de ciclismo de estrada de alto nível com o desenvolvimento do ciclismo utilitário. Para esse fim de promoção, começo a acreditar que o Tour é na verdade uma influência nefasta.

O problema nem são os persistentes escândalos de doping que perseguem as estrelas do ciclismo. Sou consciente do tipo de controlo que existe nesta modalidade, muitos níveis acima de qualquer outra. Se os futebolistas da nossa praça fossem tão controlados, o volume de escândalos seria certamente semelhante. Já a ideia de uma prova realizada sobre bicicletas originar tanta poluição e desperdício, mediante a descomunal caravana automóvel que atravessa a França durante três semanas é um contra censo, mas nem é o mais importante.



Realmente grave é o ambiente de Gladiadores de Circo Romano que rodeia os ciclistas. E a expressão não é minha. Embora os ciclistas aparentem ser as estrelas de uma competição que é também um espectáculo mediático, vários indícios parecem demonstrar que são estrelas sim, mas também uma espécie de escravos bem pagos mas sem direitos, que se digladiam para entretenimento de outros.

Tenho tido poucas oportunidades para ver o Tour na televisão, mas a quantidade de quedas violentas que presenciei em directo nesse pouco tempo chegam para deixar qualquer um mal disposto. Duas delas nem foram provocadas por situações de piso escorregadio ou disputa de posição entre corredores: hoje dois dos lideres da etapa foram derrubados por um automóvel da TV e há uns dias um participante foi derrubado por uma mota. Ciclistas deste nível raramente baixam dos 40 km/h, e a sua protecção é apenas a pele. Uma a queda a 50 ou 60 km/h contra um obstáculo, como um carro parado na berma, pode facilmente ser fatal.

Nem quero entrar nas questões de alteração da verdade desportiva (estas quedas alteram profundamente a justiça dos resultados) mas o importante a reter é a desconsideração, para usar um eufemismo, que a organização do Tour tem pela vida e integridade física dos ciclistas que participam nesta lendária prova. Há claramente demasiados veículos motorizados no pelotão e não acredito que todos eles sejam realmente necessários. Para mais, com a existência hoje em dia de rádios, GPS e outras tecnologias que facilitam o trabalho da organização e das equipas (o tour é uma prova de equipa, a coordenação é fundamental).

Mesmo a atitude dos condutores deste veículos é incompreensível, muitos colocam-se na trajectória dos ciclistas, obrigando a desvios e consequente esforço suplementar dos atletas. As razias à Zé Tuga e todo o tipo de manobras perigosas abundam, muitas vezes a milímetros dos guiadores dos atletas. Tantos carros, sempre enormes, com pessoas ao volante que muitas vezes têm que se preocupar com muito mais do que conduzir, (como directores desportivos distraídos com mil outras coisas), mais dúzias de motos com fotógrafos e câmaras, carros e motos da organização, todos em frenesim histérico, a tentar posicionar-se num local específico em relação ao pelotão, em estradas muitas vezes estreitas, são uma mistura que inevitavelmente conduz ao desastre. 

Não deixa de ser irónico que um ciclista solitário a viajar pelas belas estradas francesas estaria muito mais seguro que qualquer um destes experientes atletas profissionais a cumprir um percurso numa estrada fechada ao transito, com todas as condições de "segurança".

Parabéns Rui! Mas a bicicleta não serve só para ganhar no Tour

E a questão da inspiração para o ciclismo utilitário? Pois. Além do excelente exemplo que o Tour dá sobre como se deve ultrapassar ciclistas na estrada, é sabido que 99% destes atletas, como o vencedor da etapa de ontem, o português Rui Costa, que tive o prazer de fotografar há um par de anos, usam a bicicleta exclusivamente como instrumento de trabalho e não fariam nem meio km para fins utilitários. Para transporte preferem automóveis de alta cilindrada. Muitas pessoas do meio partilham desta visão eminentemente  lúdica e desportiva e algumas (dirigentes desportivos, jornalistas) nem sabem andar de bicicleta. Tudo o que esta gente faz é perpetuar a imagem da bicicleta-brinquedo, o que está muito bem para eles e para a industria e os media. Mas não traz nada para a causa da mobilidade.

2 comentários:

  1. Sábias palavras, eu lá no escritório sou o único que usa bicicleta como forma de transporte, contudo, os outros deliram com o Tour e sabem os nomes, fazem apostas sobre quem vai ganhar... ciclistas de sofá que depois de desligar a televisão pegam num SUV ou num descapotável de alta cilindrada para ir (às vezes) até ao fundo da rua.
    Enfim...

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  2. Lembro-me de, há muitos anos atrás, ter a imagem de os ciclistas serem uns rapazinhos humildes e ignorantes, muito mais do que os futebolistas. Hoje em dia, a maior parte deles é profissional e deve ganhar um salário muito razoável, mesmo em Portugal. Como é que isso se paga? Com toda a cobertura televisiva que existe. Ou seja, as motas (talvez, alguns carros também) no meio do pelotão são indispensáveis. Como é que o ciclista de sofá teria acesso às imagens tão empolgantes das "guerras" de pelotão? E sem imagens, não há publicidade, e lá voltamos aos rapazinhos humildes que, quando já não derem para ciclista, vão trabalhar para as obras.

    Eu diria que a maior parte desses "representantes" da bicicleta não são bom exemplo: carros por todo o lado, muito dopping, desperdício e consumo.

    Penso que foi esse Rui Costa que, há uns tempos atrás, foi colhido por um automóvel quando treinava em estrada aberta. Como? circulava encostadinho à berma, tal como é costume ver os "cromos" do ciclismo a treinarem na marginal ("não podemos pertubar o trânsito").

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