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What? Nunca comeram feijoada na cama? |
O Sol vai baixo e as sombras alargam-se pelas concorridas ruas do centro da capital espanhola. A bicicleta rola sem esforço pelo empedrado polido, o som da roda livre ecoando docemente nas paredes das casas centenárias. Desvio-me dos transeuntes com movimentos fluídos e elegantes, mantendo um ritmo suave mas constante. Sei, sinto, que estou a chegar. "Calle Victoria" leio numa placa na esquina de uma rua pedonal. Apropriado. Cá estamos. Entro na rua, a escassos metros da Puerta del Sol, o ponto mais central da capital do reino. Percorro os últimos metros entre esplanadas e um mar de turistas. A luz é simplesmente perfeita e de algum lado escuta-se o início de "In your eyes" de Peter Gabriel. É então que a vejo. Os cabelos cor de cobre resplandecem no contra-luz do final de tarde. O colorido vestido de verão destacando a sua silhueta na rua apinhada. Os nossos olhares cruzam-se, atraídos por alguma força invisível. "Estás atrasado", diz ela, esforçando-se por esboçar o seu melhor ar reprovador, mas não contendo o sorriso.
Não chego a articular a minha resposta, que antevejo ser hilariante e charmosa, pois há um crescente som irritante que monopoliza a minha atenção. Não percebo de onde vem, mas parece conhecido... Instintivamente, silencio o alarme do telemóvel e levo alguns segundos a reconhecer o que me rodeia. São seis da manhã e ainda está escuro lá fora. Acendo a luz e levanto-me a custo da cama. Esforço-me por recordar que estou numa casa rural em Oropesa, uma pequena terra da província de Toledo, bem no meio do Grande Deserto Espanhol.
Arrasto-me para o WC, mas as pernas pesam-me como dois marcos dos descobrimentos, e tenho o equilíbrio de um marujo bêbado recém regressado da carreira da India. Tenho muita sede, embora me lembre de me ter hidratado bem a noite anterior. Lavo os dentes e constato que, de alguma forma, tenho a boca cheia de sangue seco. A próxima etapa da minha higiene matinal não é mais animadora: pelo quarto dia consecutivo, a minha urina é da cor de Earl Grey. Saio da casa de banho a murmurar alguma coisa sobre "isso não deve ser bom". Ao lado da janela aberta, repousa o Dentuça. O seu olhar parece questionar: "O que é que estamos a fazer?"
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#3 Bicicleta cá dentro |
Não tenho resposta. Por isso limito-me a prosseguir mecanicamente com as arrumações. Tomo o pequeno almoço que tinha preparado e saio para a rua pelas sete da manhã. A esperada brisa refrescante não se materializa. Mesmo a esta hora, o dia está abafado. Nada posso fazer quanto a isso, mas posso acelerar o ritmo enquanto o Sol não me queima as pestanas.
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Habitual reabastecimento num posto de combustível |
Sigo meio macambúzio pela estrada fora. Aos poucos os músculos começam a responder melhor e consigo manter um ritmo confortável. Pela hora do almoço rolamos pela cidade de
Torrijos, feia como poucas. Metade dos estabelecimentos comerciais estão encerrados, entaipados. E não é coisa recente, nem efeitos do COVID, alguns dos graffiti que "decoram" estes estabelecimentos têm décadas. Há edifícios de habituação no mesmo estado. E isto no centro, nos arredores o panorama ainda é mais deprimente. Mas o calor aperta e eu não quero outro dia a terminar tarde, comigo a transformar-me numa papa, rodeada de uma poça de suor.
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Sombras e bancos! Foi a única vez que vi tal coisa! |
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Mais um dia no deserto |
Faço uma reserva pelo telemóvel para um hotel, convenientemente situado ao lado de um armazém, uma bomba de gasolina (da Galp!) e uma lavagem automática, e minutos depois estou na recepção. É um alívio sair do Sol da tarde! Descanso um pouco antes de voltar a sair, já trajando à civil, para conhecer a zona. Há um interessante stand de carros clássicos, exibindo um Clio Williams e vários Mercedes dos anos setenta, apetitosos, tudo rodeado por um matagal descontrolado, que parece saído de um filme pós-apocalíptico. E um supermercado para grossistas onde comprei uns petiscos a baixo preço, aparentemente safando-me da questão de não ser comerciante, não estar registado e não ter um NIF espanhol, por ser um turista parvo, o que suponho seja justo.
Refugiado no meu quarto de hotel climatizado, comendo várias excelentes iguarias, como uma feijoada, de lata, fria, pondero a cordura das minhas últimas decisões. Apesar de tudo estou vivo, estou inteiro, e pelo menos agora sei porque o Deserto Espanhol não parece ser grande coisa de destino turístico, e menos ainda para ciclistas. Amanhã, salvo algum imprevisto, estarei em Madrid. O GPS diz que serão apenas 86km de caminho, o que pode correr mal?
Dia 5. Oropesa-Torrijos. 107km. (Estrada)
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