sexta-feira, 1 de julho de 2011

Crónicas do Portugal Profundo: missão na N4

Saio de casa ainda na penumbra da madrugada, luzes ligadas na bicicleta, a marginal vazia e em silêncio. Tenho alguns momentos para gozar este espectáculo raro, a estrada completamente desprovida de automóveis, posso ouvir o rolar dos pneus sobre o asfalto e o som da corrente a passar nos carretos. O ar fresco da manhã inspira um ritmo forte e enquanto a BUS e eu avançamos em direcção a Lisboa, medito sobre o dia que tenho pela frente.

O plano era simples: acompanhar um amigo expatriado (vamos chamar-lhe Nuno) na sua visita surpresa à família, que estava no Alentejo. Tencionava ele atravessar o país num dia e cobrir a distância de cerca de 200 km entre Lisboa e Portalegre numa velha BTT de aço. Perante um plano tão insólito como este, tudo o que eu podia fazer era disponibilizar-me para fazer-lhe companhia, pelo menos em parte do caminho. Algumas estratégias para adocicar o comprimido fracassaram, já que encurtar a distância recorrendo ao comboio se revelou impossível. Se quiserem rir um bocado (ou talvez chorar), consultem os horários dos regionais da CP para esta zona do país.

Fazer 200 km num só dia, em pneus de tacos e transportando carga, atravessando o Alentejo em pleno verão, não será para toda a gente. Eu estava convencido que para mim não era de certeza e a minha intenção era regressar de comboio, após ter feito menos de metade do caminho.

Bicicletas a bordo do Algés

O Sol nasceu durante o caminho para o Cais do Sodré, ponto de encontro para a aventura. Apesar da média de 28km/h, cheguei uns minutos tarde. Nada de grave. Pela frente havia ainda 14 horas de luz, e porventura todas elas fariam falta para levar a bom termo a odisseia. Às 07:00 horas estávamos a bordo do "Algés", que em cerca de meia hora nos deixaria no terminal fluvial do Montijo.

Montijo, igreja Matriz

Fazer a navegação através das ruas do Montijo não foi muito difícil, bastava apontar sempre a Este, ou ao sol nascente. Depressa estávamos na N4, a avançar a bom ritmo. Quanto mais nos afastávamos do Montijo e da Atalaia, menos trânsito a estrada tinha e melhor era o espaço na berma, que nos primeiros quilómetros era inexistente. Por vezes era até possível pedalar lado a lado e os quilómetros iam assim passando em amena cavaqueira, sempre a ritmos acima dos 20 km/h. Este ritmo seria necessário manter em todo o momento, se não se queria comprometer as possibilidade de alcançar o objectivo.

A primeira paragem relevante foi feita em Vendas Novas, à sombra de umas árvores no jardim do museu da Escola Prática de Artilharia. Observando as rotinas dos nativos no centro da cidade torna-se rapidamente evidente como o uso utilitário da bicicleta é por estes lados uma realidade nada desprezível. Gostaria de explorar melhor o assunto, mas tempo era algo de que não dispúnhamos em abundância.

O verdadeiro ciclista urbano, na sua bicicleta utilitária!

Não há falta de ciclistas em Vendas Novas

Arrancámos de novo em direcção a Este, sempre pela nacional 4, ainda a manhã não ia a meio. O Sol começava a fazer-se sentir, mas o ritmo manteve-se igual. Isto até nos aproximamos de Montemor-o-Novo, onde as primeiras subidas dignas desse nome nos forçaram a abrandar. Mesmo assim, um quarto de hora antes do meio dia estávamos a amarrar as bicicletas no centro de Montemor, debaixo de um Sol esmagador. Segui-se o almoço, que não foi dos mais rápidos, mas mesmo assim estávamos devidamente alimentados e reabastecidos de agua, prontos a seguir viagem por volta da uma hora.

Foto da praxe, (mal)tirada em Montemor

Foi aqui que nos separamos. Eu tinha já 94 km nas pernas e há anos que não pedalava tanto de uma vez só. Despedi-me do Nuno depois da foto da praxe e desejos de boa sorte, e iniciei o caminho de regresso. Só de pensar nos mais de 120 km que ele ainda teria pela frente fazia-me pensar nas capacidade do ser humano e de uma coisa tão simples como uma bicicleta.

Voltei a Vendas Novas relativamente depressa, e parei para descansar um pouco. O plano original, se é que havia um, era eu apanhar aqui (ou em Pegões) o regional da CP para o Pinhal Novo. Mas o comboio só chegaria daí a mais de três horas e o Pinhal novo não era um destino ideal. Não sou propriamente conhecido por possuir grandes doses de paciência em esperar por transportes públicos, e acabei por decidir tentar o regresso ao Montijo, mesmo que levasse a tarde toda.

Ciclovia nos arredores de Vendas Novas

À medida que ia fazendo o meu caminho de regresso pela N4, debaixo de um Sol abrasador, as paragens foram-se tornando mais frequentes. Uma paragem para comer umas bolachas, outra paragem para trocar as pilhas ao GPS, uma para comprar água, uma para eliminar água do organismo, enfim, muitas paragens. Mas quando voltava a montar na bicicleta, mantinha um ritmo relativamente rápido, que no final nunca baixou dos 22 km//h.

Estes amigos são companhia constante na N4. Vale a berma.

Já a acusar muito o desgaste do dia, cheguei finalmente aos arrabaldes do Montijo. O cansaço fazia-se notar também nas minhas dificuldades em fazer a navegação de volta para o terminal fluvial, ainda a uns quilómetros do centro. Valeu a ajuda do GPS. O Montijo estava bastante diferente, desde a manhã: várias ruas estavam fechadas ao trânsito e a cidade preparava-se para uma festa das grandes. Não me demorei muito, e assim que encontrei a estrada para o Terminal do Seixalinho, acelerei pela estrada deserta, gastando as últimas energias, certo que o fim estava próximo. Foi com alguma emoção que avistei o edifício do terminal fluvial, num altura em que o ciclo-computador marcava 169 km.

Estacionamento descontraído no terminal do Montijo

Apanhei o catamaran "Algés" de volta para a capital, passavam escassos minutos das 18 horas. Pelo caminho, enquanto imaginava onde andaria o Nuno (que chegou são e salvo ao destino, pelo pôr do Sol, depois de mais de 200km pedalados) e reflectia sobre as potencialidades da bicicleta. Se um tipo como eu, que nunca fez desporto a sério e há algum tempo que não faz desporto a brincar, que tem algum excesso de peso e que já se poderia descrever como "de meia idade" consegue percorrer 170 km num só dia, sem preparação prévia, numa bicicleta de montanha, sem pneus finos, e com alguns quilos de carga, não estaremos todos, como sociedade, a desperdiçar o enorme potencial de mobilidade que a bicicleta oferece?

Dados relevantes:

Distância pedalada: 171 km.
Altitude máxima: 210 m.
Velocidade máxima: 50,3 Km/h.
Velocidade média: 22.25 
Água consumida: 4,5 l

5 comentários:

  1. Grande viagem a do sacana mor... (não me pareceu um segredo muito bem guardado!)
    Tu, deves ter ficado inspirado depois do passeio até Tróia!!
    E agora... É até ao Algarve para visitar a Ana e o Pedro em Agosto?
    Rita

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  2. Fantástica aventura, a fazer-me recordar as minhas primeiras peregrinações a pedais.

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  3. Não havia nenhum segredo, a não ser para a família. Mas foi tudo planeado à pressa, de tal maneira que eu acabei por dormir só 2 horas antes de me meter à estrada...

    Para o Algarve vou a pedalar sim, já tinha dito à Ana! : )

    Paulo: estou a ver que não falta aí pessoal do "clube dos 200"!

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  4. Ganda aventura! Esse teu amigo é um ganda maluco, mas tu não lhe ficas atrás!! :)
    Excelente reportagem!!
    Que venham muitas mais pedaladas destas!
    A bicicleta é realmente uma máquina impressionante. A mim só me falta resolver o desconforto de muitas horas sentado no selim para pensar que dá para fazer ainda mais!

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  5. Excelente narração.
    O que mais me impressiona é a velocidade média - 22,25 Km/h é muito, mas muito mais do que normalmente faço.
    De qualquer forma, concordo inteiramente com a reflexão final do seu texto: as potencialidades da bicicleta são completamente ignoradas nesta nossa sociedade carro-dependente.
    Felizmente há cada vez mais pessoas a pensarem como nós.
    Um abraço,
    100anos

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