terça-feira, 2 de agosto de 2011

"O falso moralista"

Presidente da Câmara de Vilnius e o Mercedes na ciclovia. Imagem SWNS

Tenho um colega da faculdade que identifica com a expressão "Falso Moralista" todo aquele que não esconde um comportamento menos convencional ou mais altruísta. Por exemplo, se andas de bicicleta na cidade sem ser por seres muito pobre, és um falso moralista. Tens preocupações ambientais, falso moralista. Separas o lixo para reciclar: falso moralista! Basicamente, o "falso moralista" para ele será todo aquele que tem ideias alternativas às socialmente prevalecentes, mesmo quando isso significa não acreditar em cunhas e não fugir aos impostos. Esta visão é bastante comum entre nós.

Durante muitos anos fui como os outros. Fazia o que toda a gente fazia. Ia de carro para todo o lado, estacionava o mais perto possível da porta de casa, por vezes em cima do passeio. Coleccionava multas da Emel. Na auto estrada andava à velocidade que o carro permitisse. Depois de uma noite de copos, voltava para casa de carro. Para andar de bicicleta ia para o monte, sempre de carro, claro.

Eu mudei. Este blogue é um dos resultados dessa mudança e neste blogue tenho encontrado alguma resistência às minhas opiniões. O consenso parece ser que existe um excesso de crítica da minha parte, e que Portugal não apresenta assim tantos problemas no que toca ao uso dos modos suaves.

Eu mantenho a discordância.

Os desafios que se colocam a quem enfrenta as nossas ruas e as nossas estradas de bicicleta são enormes. O clima de guerra civil rodoviária, mantém-se, bem como o sentimento de impunidade. A diário somos confrontados com todo o tipo de manobras perigosas e excessos, e apanhamos pequenos sustos que facilmente podem, num dia qualquer, ser algo bem mais grave. O automóvel reina supremo, deixando marcas de violência por todo o lado. Mobiliário urbano retorcido, postes e pinos derrubados, passeios vandalizados, este é a realidade por onde se move o ciclista urbano. Quem decide pegar numa bicicleta e tomar o seu lugar na via pública deve faze-lo de forma consciente e não inspirado por fotos de pessoas bem vestidas a pedalar em cima do passeio.

Eu sei onde vivo. Os meus amigos são pessoas inteligentes e com excelente formação académica. Mas mesmo entre eles, muito poucos são os que respeitam os limites de velocidade, o código da estrada (já de si manhoso), ou os que sabem ultrapassar um ciclista com um mínimo de segurança. Os noticiários regurgitam a diário todo o tipo de atrocidades na nossa rede viária. E todos temos parentes, amigos e conhecidos que estiveram envolvidos ou faleceram em acidentes de viação. A minha mãe foi atropelada numa passadeira. Sobreviveu. Mas um tio morreu da mesma maneira. O meu avô num acidente de moto. A lista é longa. Está é a nossa realidade. Escamotea-la não nos vai ajudar a mudar nada.

Para ser possível um nível de segurança mínimo para peões e ciclistas na nossas cidades, o uso do automóvel tem de ser limitado, mesmo fortemente reprimido. Fingir que isto não é verdade, que não é necessário, que podemos todos conviver é outra falácia. Eu sou a favor de pensamento e atitude positiva (ou nunca sairia de casa com uma bicicleta), mas estou um bocadinho saturado de contos de fadas. Lisboa é um parque de estacionamento baldio gigante. Vale tudo na capital. A policia fecha os olhos e a Câmara propõem soluções cosméticas enquanto se continua a insistir em benesses para o automóvel: "melhores acessos"; "mais estacionamento público". O que Lisboa precisa é de piores acessos e muito menos estacionamento! E mais passeios, mais faixas BUS, mais zonas de 30 km/h, mais zonas pedonais, ciclovias realmente segregadas, ciclofaixas seguras, sem perdas de prioridade e poucos cruzamentos. E uma policia municipal que faça... o seu trabalho.



Nada realmente mudou a não ser a vontade de mais pessoas pegarem numa bicicleta. Isso é fantástico, e provavelmente será o mais importante, mas ainda está quase tudo por fazer. O código da estrada prevalece. Não estamos mais próximos de legislação de strict liability. O país continua enamorado do grande libertador, o carro. Taxar ou acabar com o estacionamento público, fiscalizar o estacionamento ilegal,  pedonalizar ruas, trocar o trânsito por esplanadas nas principais praças, construir ciclovias: tudo são iniciativas que podem significar o fim da carreira de um autarca. A campanha do presidente da câmara de Vilnius que ilustra este post dificilmente seria empreendida ou compreendida por cá.

Mas o relógio não para. Com tudo o que está a acontecer na nossa economia, e com o previsível aumento continuo do preço dos combustíveis fosseis nos próximos anos, eu quero ver como se vão deslocar as pessoas (e os bens) na zona de Lisboa, se os transportes públicos estiverem arruinados e só as elites puderem suportar o uso do automóvel. Continuamos a hipotecar o futuro e ninguém se parece questionar. As alternativas existem, e a bicicleta é certamente parte da solução. É pena que tão poucos entre nós a levem a sério.

6 comentários:

  1. O que mais posso dizer, senão PARABÉNS!!!
    Adorei o final: "As alternativas existem, e a bicicleta é certamente parte da solução."

    @prosaebicicleta

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  2. A revolução na mobilidade está a ser feita pouco a pouco pelos cidadãos comuns.

    Os políticos andam atrasados e ainda não perceberam a mudança que está em curso, quando deveriam ser eles a dar o exemplo e a incentivar a mudança.

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  3. Muito bom, este artigo. Reflecte a tua opinião, que é coincidente em quase tudo com a minha, sem ir buscar aqueles exemplos bacocos do "lá fora é que é". Se lá fora se faz melhor ou não, isso pouco importa, enquanto a sociedade não se aperceber que tem um problema bicudo para resolver. Depois sim, quando se aperceber disso, podemos espreitar lá para fora, para buscar a melhor solução e adaptá-la ao nosso problema concreto.
    "Quem decide pegar numa bicicleta e tomar o seu lugar na via pública deve faze-lo de forma consciente e não inspirado por fotos de pessoas bem vestidas a pedalar em cima do passeio." Muito boa esta frase. Por isso é que eu discordei das tuas conclusões no artigo referente ao filme da Finlândia. O filme é bom, e como ciclista apreciei-o. Mas não reflecte a nossa realidade e pode ser um falso testemunho de outras realidades. Pode numa primeira fase inspirar pessoas a querer experimentar a bicicleta, mas numa segunda fase a nossa violenta realidade pode fazê-las desistir para sempre e, pior que isso, podem ser dissuasores ferozes de outros potenciais ciclistas urbanos.
    A única parte deste texto em que não temos uma opinião coincidente é no último parágrafo. Continuo a considerar que os factores económicos e ambientais (não os referes nesta peça) não deviam ser utilizados como argumento na mobilidade. Em primeiro lugar, se as pessoas deixarem de usar carro por apertos financeiros, o mais certo é voltarem a usá-lo tal qual o faziam antes, mal a situação económica melhore. O que significará que as pessoas optaram por outras soluções de forma egoísta, sem perderem de vista o seu querido pópó. Recordo-me, como se fosse ontem, dos racionamentos de combustível que vivemos e das medidas patetas que as pessoas adoptaram para as contornar. Aliás, Alexandre O'Neill escreveu algumas crónicas boas, na altura, a denunciar a situação. E uns anos mais tarde, eram muitas as pessoas que viajavam nos transportes públicos entre o dia 4 e os dias 28, 29, e nos outros dias íam de carro para o trabalho. O ordenado não esticava :) Portanto, se não houver uma mudança de mentalidade na questão da mobilidade, o aperto financeiro actual de pouco servirá.
    Em segundo lugar, imagina que o carro eléctrico, por artes mágicas, resolve todos os problemas que motivaram a sua derrota contra os de motor a explosão há quase 100 anos e triunfa finalmente. Logo os técnicos publicitários da lavagem cerebral conseguirão com facilidade convencer uma sociedade carro-dependente a mudar do "petrol" para o ampère. E, como não deves ignorar, já hoje o estribilho cantado é o de que o carro eléctrico é amigo do ambiente. E a sociedade quer ser convencida disso. Portanto, os problemas relacionados com o carro continuarão. E a bicicleta, se centrar o seu discurso na dicotomia actual carro-poluidor/bicicleta-limpo, arrisca-se a perder essa batalha.
    Finalmente, uma pequena dúvida. Sem querer "armar-me aos cucos", eu não tenho um percurso semelhante ao teu. Talvez por ser mais velho, talvez por ter a bicicleta como meu primeiro transporte individual (depois de anos a palmilhar a pé os carreiros de cabras quando ía para a escola e mais tarde para o trabalho), talvez por ter obtido a carta de condução numa fase muito adiantada da vida, o certo é que nunca fui como os outros, como referes no segundo parágrafo. O que te fez mudar? O que achas que está a fazer mudar alguns jovens, habituados a fazer o que fazias na tua vida anterior? Talvez, na resposta a esta pergunta, esteja o gérmen da solução para mudarmos o actual paradigma da mobilidade e acabarmos com o reinado supremo, paranóico, violento e assassino do carro.

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  4. Não sei bem o que me fez mudar. Sem dúvida houve pessoas que me influenciaram. Eu aprendi a andar de bicicleta muito tarde na vida, aos 28 anos! Logo a seguir meti-me a fazer BTT e na altura estava em grande forma. Não conseguia compreender porquê ninguém parecia querer dar mais utilidade à bicicleta. A resposta parecia ser a "falta de condições" e eu aceitei isso por uns tempos. Agora ainda acho que não há condições, mas não posso ficar à espera que apareçam...

    Um abraço!

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  5. Excelente post. Passei pelo mesmo processo e partilho a opinião sobre o tema.

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