sexta-feira, 21 de outubro de 2011

A crise segundo o Snob

Às vezes gostava de ser uma espécie de Lisboa Bike Snob. A sério. Só há duas coisas que o impedem, na verdade. Em primeiro lugar falta-me, como se diz, hum... talento. E depois, e não deixa de ser importante, falta-me uma "bicycle culture" local com a qual gozar. Não digo que essa sub-cultura não exista entre nós, nem que esteja acima de crítica, no entanto são tão poucos e enfrentam um tal mar de injustiças e incongruências na nossa terrinha, que fica muito mais difícil critica-los.

Voltando ao guru norte americano da blogosfera movida a pedais, um post recente deixou-me a pensar mais do que a rir. A propósito de um acidente mortal envolvendo um ciclista e reflectindo sobre a incrível facilidade com que nos EUA são desculpados todos os actos de violência cometidos com um volante nas mãos, o Snob tenta encontrar explicações racionais. Cá não será muito diferente e por isso gostei das explicações que ele avança, meio a brincar, meio a sério.

Diz o Snob que, basicamente, os humanos não conseguem racionalizar as consequências de escolhas que parecendo proveitosas a curto prazo, terão efeitos negativos a longo prazo. Não conseguimos resistir a brinquedos novos, a coisas brilhantes e reluzentes, mesmo que isso implique sérias consequências num futuro não muito longínquo.

Neste quadro, os ciclistas são apenas, na melhor das hipóteses, uns incompreensíveis excêntricos, chatos, que atrapalham o prazer de "disfrutar" da condução de um bom automóvel, o brinquedo da sociedade por excelência desde o pós-guerra. Até aqui nada de novo, ainda o outro dia tive a triste ideia de ligar o televisor e no zapping entre canais deparei com esta cena de uma conhecida série norte-americana:




Mas com esta ideia podemos ir um pouco mais longe: o que são os problemas de urbanismo das cidades portuguesas senão o facto de autarcas gananciosos (ou desesperados por financiamento, depende do ponto de vista) terem autorizado todo o tipo de projectos, em qualquer sítio, sem respeitar a lei ou considerar as implicações? O que são as dificuldades em aprovar medidas em prol de uma mobilidade mais sustentável em Lisboa senão um reflexo da obsessão dos autarcas em serem reeleitos dai a uns anos? O que é a nossa inacreditável crise económica actual senão uma consequência de uma sucessão de governantes terem  trocado obras rápidas agora por um futuro completamente delapidado depois?

Não restam dúvidas que uma das características da nossa sociedade actual é a valorização do imediato. Que isso seja um atributo inato da humanidade também pode ser argumentado. Mas que seja incontrolável já não. A prova de que não abdicamos sempre de futuros proveitos em detrimento de ganhos imediatos é justamente que temos uma sociedade, uma civilização. Não somos caçadores recolectores, somos descendentes de agricultores, que tinham que saber esperar o ciclo da natureza para fazer as suas colheitas e produzir, eventualmente, a abundância.

Mas chegados aqui, parece que andamos a tomar uma série de decisões de curto prazo que são claramente contra os nossos interesses de longo prazo. Perseguindo o sonho de uma casa nova e confiando na mobilidade prometida pelo automóvel, os lisboetas há muito evacuaram a capital e vivem agora dispersos pela vasta periferia, completamente dependentes dos seus pópós e consequentemente da disponibilidade de combustíveis fósseis baratos. A maioria parece pensar que será assim para sempre, quando há sinais inequívocos de que a mudança é inevitável. E urgente.

Fonte: DriveSteady.com

Ávidos de satisfazer as massas auto-mobilizadas, bem como alguns compadrios políticos, as nossas classes dirigentes gastaram milhares de milhões, que na realidade não tinham, numa descomunal infraestrutura rodoviária, ao ponto de Portugal bater recordes atrás de recordes em taxas de motorização. Pelo caminho foi-se desmantelando (e continua-se a desmantelar) a Ferrovia, o único transporte de longo curso realmente sustentável, sob o argumento de que era demasiado caro.

Não é propriamente a minha área, mas não é difícil perceber que grandes infraestruturas levam anos, décadas a construir (Os milhares de quilómetros de AE's levaram mais de 20 anos). Se de repente o lisboeta-dos-subúrbios não pudesse suportar o preço dos transportes e quisesse mudar-se para mais perto do emprego, isso não ia acontecer do dia para a noite. E muito mais complicado é reconstruir a rede ferroviária que foi aniquilada por sucessivos governos fanáticos do asfalto.

Imaginem só por um momento que o crescimento económico não volta tão depressa. Que esta crise perdura. Não deveríamos estar a incentivar formas mais sustentáveis, economicamente, de transportar pessoas e bens? Porque que é que o estado continua a incentivar e financiar directa e indirectamente o uso do automóvel ao mesmo tempo que restringe e penaliza formas de mobilidade mais sustentável?

Ora eu não sou como aqueles manifestantes que são contra qualquer coisa mas nunca oferecem soluções. Mesmo sem mais preocupações que não as económicas, o que se devia estar a fazer agora era exactamente oposto do que se tem feito:

  • O governo da nação deveria estar a renegociar completamente os contractos ruinosos que o estado fez com as concessionárias das autoestradas. Se necessário fosse levava tudo para tribunal. Podia até fechar algumas AE's, que só a sua manutenção tem custos astronómicos.
  • Devíamos estar a investir com pés e cabeça na ferrovia. E não é preciso ser de alta velocidade.
  • A Assembleia devia aprovar legislação que promovesse o uso dos modos suaves, quer através de alterações do código da estrada que os protegessem devidamente, como por medidas fiscais que os incentivassem.
  • Os municípios deveriam restringir ao máximo o uso e estacionamento de automóveis no centro das cidades. O uso desnecessário do automóvel é uma sangria constante de dinheiro para o exterior. Ao mesmo tempo deveriam investir nas alternativas, onde se inclui o ciclismo utilitário.


Mas as mentalidades não se mudam da noite para o dia. Tudo isto que acabei de escrever parecerá nada menos que utópico para muitos. A realidade portuguesa não se deixa intimidar por trivialidades, coisas como "factos", "números"  ou "dados Concretos". E como dizia alguém, Portugal tem a capacidade de visão de futuro da cigarra, não da formiga. Infelizmente.

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