sábado, 4 de agosto de 2012

Londres Olímpica e o Ciclismo Utilitário

A tocha olímpica faz o seu caminho pelo norte de Londres

Levou o seu tempo, mas os Ingleses lá se entusiasmaram com os Jogos. Quando aqui cheguei, há mais de um mês, predominava a indiferença e o sarcasmo. As pessoas queriam era fugir de Londres para evitar o apregoado caos eminente. Com o aproximar da data do inicio dos jogos as coisas foram mudando gradualmente. Agora pode-se dizer que a maioria dos locais está visivelmente entusiasmada, quando não mesmo obcecada com os resultados dos jogos. E há três dias atrás, Bradley Wiggins ganhou a prova de contra relógio de estrada, depois de ele próprio, vestido de amarelo, ter dado inicio à cerimonia de abertura no dia 27 de Julho.

As patilhas mais rápidas do universo a caminho do ouro olímpico

E este fulano também andou por lá...


Depois da decepção do sábado passado, quando as esperanças dos Ingleses numa vitoria do sprinter Mark Cavendish na prova de estrada foram goradas, segundo as reclamações do próprio porque toda a gente queria que o Team GB perdesse, as patilhas mais rápidas do universo conhecido restauraram a honra entre as hostes da casa. Desde essa altura parecem ter sido abertos os portões dourados e a comitiva da britânica não para de subir na tabela das medalhas, incluindo mais algumas contribuições do ciclismo de pista.

Isto foi o que eu consegui ver da prova de estrada. Diz que ganhou o Borat...

Toda esta glória olímpica parecia ser literalmente ouro sobre azul, numa cidade de Londres onde se vive uma muito visível revolução movida a pedal. Há quem considere que o sucesso do ciclismo "desporto" é uma boa promoção para o ciclismo "transporte". Essa ligação é pouco clara, como já aqui referi, mas não se pode facilmente negar que ela existe.



Não é por isso de estranhar que quando (mais) um ciclista urbano foi esborrachado por um autocarro perto do parque Olímpico na quarta-feira, os jornalistas apressaram-se a saber a opinião do ciclista mais famoso da velha Albion. Talvez surpreendido pela pergunta, o novo ídolo Londrino recitou uma série de lugares comuns sobre "segurança" e o uso do capacete. A sensibilidade da questão do capacete não é reconhecida pela maioria das pessoas fora da cycling community, e cheira-me que o campeão britânico, como muitos outros atletas, não usa a bicicleta para transporte há muitos anos.

Conversas que só podem acabar mal: política, religião e... capacetes.
 
Posteriormente, Bradley Wiggins queixou-se de ter sido mal interpretado, mas o estrago estava feito. O seu companheiro que se dá menos bem com as olimpíadas, Mark Cavendish, parece ter uma opinião mais ponderada sobre o assunto: presuma-se sempre que a culpa é do veículo motorizado e terão parte do problema resolvido. É o que sucede em países como a Holanda, mas é claro que esta ideia parece demasiado radical em muitas culturas dominadas há décadas pelo automóvel. Referir que essa é a prática nos países onde o ciclismo tem mais adeptos e é estatisticamente mais seguro parece não servir de muito.

Há dias em que até este homem tem receio de andar na estrada
 
Focar a questão nos capacetes é uma "solução" típica de uma sociedade auto-centrada. O Bike Snob fez umas observações bem interessantes (e sarcásticas, como habitualmente) sobre esta questão. O problema é que por muito à frente de, por exemplo, Lisboa, que Londres esteja, toda a questão da mobilidade em bicicleta é encarada como se de carros se tratassem. Eis uma noticia bombástica: uma bicicleta não é um carro. Dificilmente atinge velocidades perigosas. Não tem uma gaiola metálica e para-choques, não tem zonas de deformação programada, não tem airbags. Um capacete nunca substituirá nada disso. Misturar ciclistas com automóveis e camiões em ruas com muito trânsito, num ambiente implicitamente competitivo, por muita boa vontade que exista, vai ter sempre consequências graves para os mais fracos.

Esta é a companhia habitual do ciclista em Londres

Não só a relação com o desporto pode passar a imagem de que o ciclismo utilitário é coisa de "atletas" e de adeptos do risco e da adrenalina, como o ciclismo utilitário está agora pendente da opinião pouco esclarecida destes campeões, que no dia a dia andam de carro pela cidade. Circular de bicicleta deveria ser uma actividade normal, tão normal e segura como qualquer outra forma de deslocação. Enfiar capacetes à força em toda a gente vai tornar o ciclismo seguro? Como? Em Londres praticamente toda a gente já usa capacete. E reflectores, da cabeça aos pés. E luzes a piscar mesmo de dia.

Pernas descobertas? Está mesmo a pedi-las para levar com um autocarro em cima!

Eu sei que após tantos anos de auto-dependência custa a perceber que os veículos motorizados são intrinsecamente perigosos e que deveriam existir regras muito mais estritas a regular e limitar o seu uso. Parece ser mais fácil oprimir e ignorar a minoria do que tentar resolver o problema de uma forma objectiva. Até porque, de uma perspectiva eminentemente lógica, a única solução seria a segregação total. Do trânsito motorizado, naturalmente.

8 comentários:

  1. Iou! Obrigado pelo update aí da ilha chuvosa! Eu vi parte da prova de estrada feminina num foodcourt em Kuching na Malásia e aquilo estava animado com um monte de ataques infrutíferos das atletas holandesas. Fiquei agora a saber aqui pelo LisboaBike que as patilhas mais rápidas do universo ganharam o contra-relógio - tal é o meu nível de informação olímpica :)

    Chamou-me a atenção esta frase quase no final "Parece ser mais fácil oprimir e ignorar a minoria do que tentar resolver o problema de uma forma objectiva." Perguntei-me: mas é mesmo a maioria?? Aqui em Singapura não é certamente.

    Fui à fonte de conhecimento universal: http://en.wikipedia.org/wiki/List_of_countries_by_vehicles_per_capita ("All figures include automobiles, SUVs, vans, and commercial vehicles; and exclude motorcycles and other motorized two-wheelers")

    Singapura tem 156 veículos motorizados por 1000 habitantes.

    UK tem 525. Tendo em conta que inclui veículos comerciais, menos de metade - i.e., uma minoria - da população tem carro.

    E certamente em outras partes do mundo a grande maioria da população NÃO tem carro. E mesmo assim é um problema global dados os padrões que foram criados ao longo da história que "legitimam" o domínio (elitista?) dos veículos motorizados no uso da terra.

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  2. Confesso a minha dificuldade em entender estes atletas de hábitos saudáveis... ou estes ingleses?
    Getting wasted at St Pauls

    Ou sou talvez mesmo careta por achar estranho o campeão do Tour e olímpico não só achar normal apanhar uma piela como publicitá-la ele próprio? Talvez para mostrar aos jovens fãs como se chega "lá"? :)

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  3. Hehehehe! É, o Wiggins é mesmo Inglês, e ainda para mais ele é do Sul de Londres. O outro dia perdi-me por essas bandas e acredita que é um lugar complicado. Até levei com um bêbado que insistia que eu era um agente secreto da Mossad... O álcool em grandes quantidades tem fortes tradições por aqui : )

    Abraço!

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  4. Parabens pelo blog, leio com alguma regularidade. Continuaçao de bom trabalho

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  5. Grande Bessa, retomei a tua leitura agora a pedais, e entretanto percebo que estás a viver em Londres, mas continuas com a tua verve bem afinada! Belo blog que aqui tens, só foi pena para as scooters, que ficaram a perder.

    Um abraço,
    Vasco

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  6. Obrigado Vasco! Sim, estou a passar uns meses em Londres, a revolução a pedal parece imparável por aqui. As scooters não estão esquecidas, não se encontram muitos modelos clássicos (ou LML´s) por aqui, mas Vespas modernas há muitas e pode-se comprar uma CN por umas 600 Libras...

    E é engraço encontrar a Scootering à venda até em supermercados : )

    Grande abraço!
    Bessa

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  7. Bem sigo-te recentemente e como falas no uso de capacete, talvez estejas interessado em ler algo sobre o que dizes a Dutch Union Cycling sobre isso: http://www.dutchnews.nl/news/archives/2012/02/helmets_make_cycling_less_safe.php

    Abraço

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