Há dias piores... |
O fim de semana estava devidamente programado, as bicicletas carregadas descansavam no seu lugar próprio a bordo do comboio regional da CP, quase vazio, que tinha como destino Castelo Branco. Tudo rolava sobre carris, por assim dizer, e a expectativa era grande. Pela frente tínhamos, a co-habitante e eu, quatro dias de verdadeiro cicloturismo no Portugal profundo.
Viajar de Comboio: quase tão bom como de bicicleta! |
Para quebrar a monotonia, já perto do fim da viagem, fui brincar com o GPS, verificar a velocidade do comboio, a distância a que estávamos do destino, a altitude... As paisagens neste percurso são deslumbrantes, muitas vezes avançamos por vales que não se poderiam visitar de outra maneira, o azul dos rios e o verde das florestas enchem as janelas e lentamente começamos a sentir-nos desligados do stress urbano de Lisboa.
Com um atraso de mais de meia hora, o comboio entra em Castelo Branco perto das 20:30h, criando em nós uma certa ansiedade, uma vez que ainda temos que atravessar a cidade que não conhecemos e chegar ao parque de campismo nos seus arredores, a tempo de montar a tenda antes de escurecer. Para a navegação contamos com o auxilio do GPS, que vem carregado de pontos de interesse e percursos para todos os locais que pretendemos visitar. Com os minutos para o pôr do sol a contar, faço uma descoberta muito embaraçosa: na brincadeira no comboio, inadvertidamente apaguei tudo o que estava na memória do GPS! Os níveis de ansiedade crescem, assumo a responsabilidade perante a co-habitante e não temos outro remédio senão partir e tentar encontrar o caminho recorrendo a meios mais convencionais.
Na estação da CP de Castelo Branco |
Felizmente a distância não era grande e, como se diz, quem tem boca vai a Roma. Apesar da tensão crescente que sentíamos, a verdade é que a tenda foi montada no bonito parque de campismo municipal com os últimos raios de Sol. O que nos deixou só com mais um problema: no parque não havia qualquer infraestrutura de apoio, teríamos que ir jantar fora. Assim, contra as nossas regras, percorremos cerca de 3 km na estrada escura para jantar num simpático restaurante nos subúrbios de Castelo Branco, perto dos novos supermercados lá da terra. Felizmente tínhamos luzes, embora de recurso.
Amanhece no parque de campismo de Castelo Branco |
O amanhecer do 2º dia foi duro, já estávamos esquecidos dos rigores do campismo e algo destreinados em desmontar tendas e encher alforges. Tudo re-acondicionado, banhos tomados, pequeno almoço ingerido e indicações para o caminho obtidas, eram quase onze horas quando finalmente nos fizemos à estrada. Era Domingo de manhã, pelo que o trânsito nas estradas nacionais era ligeiro, e cruzámos caminho com vários ciclistas locais, incluindo crianças. Os habituais comprimentos trocados com os colegas do pedal e as paisagens da região mantinham os espíritos em alta, apesar do Sol impiedoso do meio dia obrigar a algumas cautelas. Precavidos, só eu transportava 2 litros de agua e não facilitámos com o protector solar. Pelo caminho encontramos uma estranha "ciclovia", que recordava as de Lisboa: começava no meio do nada e acabava em nenhures.
Idanha-a-Nova, típica rua, neste caso onde se encontra o Posto de Turismo |
Na maior parte do percurso que fizemos a estrada era estreita e não havia bermas. Valia o fraco fluxo de trânsito. A altimetria era muito acessível, o percurso não era plano, mas ora se subia um bocadinho ora se descia e recuperava o tempo perdido. Já bem entrada a hora de almoço, chegámos a Idanha-a-Nova e dirigi-mo-nos directamente à zona velha, na demanda de um merecido almoço. Isto veio a revelar-se um erro táctico, uma vez que nesta zona só havia um restaurante digno de esse nome, e um de onde não conseguíamos manter vigilância sobre as bicicletas que ficariam na rua, com toda a sua carga. Demos várias voltas mas tivemos que nos resignar às evidências: ou era ali ou teríamos que sair da vila para procurar almoço. Fomos recebidos neste estabelecimento com sorrisos amarelos e alguma desconfiança. Não estávamos de licra, mas mesmo assim a visão de um ciclista a entrar num restaurante ainda perturba algumas pessoas, uma experiência que já tinha de viagens no passado.
Almoçamos, não deixámos gorjeta e fomos dar um salto ao posto de turismo local, para confirmar o caminho para o parque de campismo e saber mais sobre as maravilhas da região. A saída de Idanha faz-se a descer, numa estrada de curvas retorcidas, onde se atingem velocidades impressionantes. Este troço requereu alguma atenção, mas dentro em breve estávamos de novo numa estrada tranquila e em menos de nada demos com esta vista:
Albufeira da Barragem Marechal Carmona |
O parque de campismo estava agora a 1500 metros e rapidamente tratámos da inscrição, montámos a tenda, largamos a tralha e fomos fazer um reconhecimento à albufeira. Por ser Domingo havia bastante gente nas margens, a pescar, tomar banho ou só a passear. Todos insistiam em levar o carro mesmo até à beira de agua e havia uns tipos irritantes a fazer barulho e levantar poeira nuns buggies alugados. Mesmo assim conseguimos arranjar um cantinho sossegado só para nós e o nosso merecido descanso.
Patinhos! |
Caminho que circunda parte da albufeira |
O merecido banho |
Aos poucos, os vai e vem da malta dos todo terrenos começou a acalmar, e as pessoas começaram a desaparecer das margens da albufeira. A temperatura baixara notoriamente e não faltou muito para também nós rumarmos ao parque em busca de jantar. Depressa descobrimos que, ao contrário do prometido na recepção, não havia um restaurante digno de esse nome no parque e o que existia não estava aberto depois das oito. A senhora da recepção conseguia irritar-nos ainda mais, recusando-se a abrir a cancela para passarmos na entrada, obrigando-nos a entrar e sair pelo estreito acesso para peões. Felizmente havia um restaurante a curta distância do parque, onde comemos muito bem.
Cai a noite na albufeira |
Para o terceiro dia estava pensada uma visita a Idanha-a-Velha, uma aldeia histórica bem conhecida da região. O plano original envolvia seguir um track por estradão até à vila, mas como o track já não existia no nosso GPS, resolvemos seguir um percurso pedestre semelhante, marcado no terreno. O problema dos percursos pedestres é que nem sempre se adaptam ao ciclismo, pois podem ter secções que envolvem escalada, túneis na rocha ou outras dificuldades dificilmente transponíveis de bicicleta, mesmo de todo o terreno, como era o caso. Assim, logo nos primeiro quilómetros fomos confrontados com obstáculos intransponíveis e obrigados a abandonar também este plano B, pelo que acabámos por optar pelo C: ir pela estrada.
Ops: fim do caminho! |
Aproveitámos o desvio para Sul e fomos dar uma olhada à barragem propriamente dita, que se acede por uma estrada própria. Sendo Segunda Feira, esta zona estava deserta. A obra data dos anos 30 e se não impressiona pela grandiosidade, a sua idade avançada e decoração com tiques Estado Novenses merecem destaque. Existe mesmo um enorme brasão com esfera armilar acoplado ao paredão da barragem. Orgulho de ser português e essas coisas. Outros tempos. Não nos podíamos demorar por ali, o calor apertava e a ideia era estar em Idanha-a-Velha pela hora do almoço. A estrada que tomámos tinha algumas subidas dignas de nota, mas o trânsito era quase inexistente, o que tornou a viagem bem aprazível. Com receio de não encontrar nada em Idanha-a-Velha, comprámos comida na bonita vila de Alcafozes, e seguimos caminho para a aldeia histórica, a poucos quilómetros de distância.
Idanha-a-Velha, tal como se avista da estrada |
Almoçamos na rua, sentados na ruína da muralha da vila, à sombra de umas árvores e com vista para a igreja de Sta.Maria. Passeámos pela terra, onde me chamaram especialmente a atenção os vestígios da presença romana naquelas paragens. Tudo bem mantido e organizado. Só falta a coragem política, como noutros lugares, para proibir a entrada de automóveis na vila, o que daria mais destaque ao valioso património arquitectónico. Mesmo assim, em termos de recuperação do edificado e valorização dos espaços, tanto para quem visita como para quem lá mora, Idanha-a-Velha bem podia ser um exemplo para incontáveis aldeias deste país.
Vista de Idanha-a-Velha, Igreja de Sta. Maria em destaque |
A ponte Romana. Quantas pontes feitas hoje durarão 2000 anos? |
O passeio chegou ao fim depressa demais, mas tínhamos alguma preocupação com o sítio onde iríamos jantar, uma vez que o restaurante do dia anterior estaria fechado e o parque de campismo tinha uma espécie de café que fechava às 20h. Ir a Idanha-a-Nova comer era possível, mas pouco recomendável, (distância/altitude) pelo que teríamos que regressar cedo ao parque e estudar uma solução.
As pedras estavam soltas e tanto a co-habitante como eu molhamos o pezinho! |
O regresso fez-se pelas mesmas estradas tranquilas, depois de encontrarmos um atalho para a saída da vila que poupou alguns quilómetros às nossas pernas. Não fosse um automobilista idiota, daqueles que buzinam e fazem razias sem qualquer necessidade e o regresso teria sido perfeito. Chegamos tão cedo que ainda fomos tomar qualquer coisa e espreguiçar para a piscina do parque, quase deserta. Compramos umas sandes para o jantar antes do fecho do café e ainda fomos dar um passeio a pé pela zona, antes de ir para a cama.
Nacional 332 à saída de Idanha-a-Velha, uma estrada típica da região |
A manhã de Terça feira estava destinada ao regresso, e isso implicou levantar cedo. Apesar de alguns atrasos, pelas 09:30 já tínhamos tudo tratado e estávamos na estrada para Castelo Branco. A primeira dificuldade a vencer foi a épica subida para Idanha-a-Nova, um esforço digno de nota (e de medalha!) para bicicletas carregadas e ciclistas abaixo de forma. Apesar de tudo, a dificuldade foi superada sem grandes problemas. Daí para a frente o trânsito foi aumentando à medida que nos aproximávamos de Castelo Branco, tornando-se mesmo perigoso já perto do destino, com ultrapassagens "à queima" constantes, por parte de ligeiros e pesados, na estrada sem bermas. Sobrevivemos, e almoçamos calmamente perto da estação, enquanto esperávamos que a bilheteira da CP abrisse.
O Comboio para o Entroncamento, onde outro idêntico nos levaria a Lisboa |
O setup habitual nestas viagens |
A viagem decorreu com tranquilidade, como diria o Paulo Bento, apenas tivemos o choque de regressar a Lisboa e à realidade nua e crua da hora de ponta da capital. Chegámos a casa já com saudades do ar puro e do sossego de um distrito que tem uma das menores densidades de população do país. E muito mais que isso para oferecer ao viajante de bicicleta.
Dados relevantes do fim de semana prolongado:
Distância pedalada: 170 km.
Altitude máxima: 403 m.
Velocidade máxima: 60,7 Km/h.
1º dia: Casa - Stª Apolónia e CP - Camp. Castelo Branco. Total 24,7 Km
2º dia: Camp. Castelo Branco - Camp. Idanha a Nova. Total 50,1 km
3º dia: Camp. Idanha - Idanha a Velha e regresso. Total 45,3 Km
4º dia: Camp. Idanha a Nova - CP Castelo Branco - Casa. Total 49,9 Km
Que luxo!!! Boa vida!!!
ResponderEliminarQue nostalgia de Idanha-a-Nova e respectivo parque de campismo! Foi lá que o "Buli" foi inventado há quase 17 anos! E há uns 12 ou assim participei numa épica corrida (entre 4 loucos pentatletas) entre a Câmara Municipal de Idanha-a-Nova e o parque de campismo, que começou a toda a velocidade na descida e continuou à matança como se se tratasse da luta pela medalha na maratona olímpica (e nem contava para nada de especial além de amizade e espírito competitivo :) )
Boas pedaladas!
É pá, também tinha estado em Idanha a acampar há 12 anos, mas foram umas férias bem convencionais, nada de correrias : )
ResponderEliminarUm abraço!
Bessa
ResponderEliminarSeria interessante comparar os gastos que se fazem num fim-de-semana deste tipo, com aquilo que um cidadão comum gastaria indo de carro.
Abraço
Toni: Ponderei nesta e noutras ocasiões listar os gastos, mesmo que de forma resumida. Mas o post foi ficando demasiado grande e acabei por deixar isso de fora.
ResponderEliminarEra algo como:
Transportes:
CP Lisboa - C. Branco 12.00Eur Bilhete.
Alojamento 2 Pessoas
Camp. Castelo Branco 1 noite 5.70Eur
Camp. Idanha 2 Noites 22.00Eur
Mas é boa ideia para o futuro, sem dúvida.
Abraço