sexta-feira, 7 de maio de 2021

Projecto Bacalhau: Dia 15 - Com um Mamute e um Cacho de Bananas na N2

Cá vamos nós!


O modesto hotel de Chaves não desilude na simpatia e no pequeno almoço. O ambiente é de enorme expectativa. Depois de duas semanas na estrada, hoje começa a N2! Mas no briefing que faço de manhã cedo com o Dentuça, há uma questão que surge. Acontece que conhecemos quem tenha feito esta rota antes, de bicicleta, mas com carro de apoio e alojamento tratado. E quem fez, fez muitos mais quilómetros por dia do que aquilo que eu sou capaz. Por causa das comparações, o Dentuça acha que temos andado a pastar, a vagabundear pelo país até agora, e se não estipularmos uma meta, um objectivo, eu vou "arrastar-me" também pela N2 abaixo, porque aparentemente sou "um granda menino". 

Assim, para não ser demasiado fácil, para ter mais um aliciante, mais um incentivo, fica estipulado que tenho que fazer a N2 completa em sete dias no máximo, o que se traduz numa média diária sempre superior a 100km. A altimetria no Norte mete respeito, mas melhora no Sul do país. O facto de nesta altura já ter mais quilómetros nas pernas que os 738 da própria N2 dá-me alguma confiança. No entusiasmo da manhã, eu acho tudo boa ideia e comprometo-me a cumprir os objectivos traçados pelo paquiderme estofado. 


Na ponte romana


Chega a hora da partida. Atravesso Chaves com um cacho de bananas pendurado na bolsa do selim, e a sensação de estar a dar início a uma missão, alguma coisa importante. Localizo o Km 0 sem dificuldades. Fica no meio de uma banal rotunda concorrida. Imediatamente alguém reconhece os meus propósitos e se oferece para tirar a minha fotografia com a bicicleta, em frente ao marco quilométrico que indica simplesmente 0Km. Boas energias.  


O Km Zero

E a coisa começa. Rolando pela cidade, já na N2, recebo várias buzinadelas de incentivo. As pessoas acenam, sou uma pequena vedeta temporária. Os habitantes estão acostumados ao colorido de ciclistas e motards a passar por aqui, mas não devem ter visto muitos recentemente, devido ao COVID. A sensação é incrível, ontem era só um ciclista esquisito anónimo, cheio de coisas penduradas na bicicleta. Hoje sou como um peregrino de Santiago, toda a gente parece perceber o que estou a fazer. E parecem gostar.  


Vidago

A estrada em si tem ambiente. Nos últimos anos parece ter havido um esforço por divulgar o traçado da N2 como forma de fomentar o turismo nos concelhos abrangidos e os indícios estão por toda a parte. Desde os cafés e restaurantes que mudaram de nome para algo referente à N2, até uma app dedicada para o telemóvel e um passaporte, ao estilo da credencial do peregrino de Santiago. Mas não se enganem, a N2 não é feita de marketing, o traçado é de facto simplesmente magnífico, e depressa a sua fama se justifica.


Decididamente não estamos no Isaltinistão


Mais Chaimites em Vila Real


A manhã corre a bom ritmo, estou a levar a questão dos 100Km/dia a sério. O almoço é numa esplanada em Vila Real, em frente ao novo hospital e em conversa com alguns nativos. Foi uma excelente refeição, mas tenho de voltar para a estrada. Uma olhada no telemóvel confirma a existência de um parque de campismo em Lamego. Essa é a distância certa para os meus objectivos e Lamego passa a ser o nosso destino para o dia. 


A4, Viaduto do Corgo


A saída de Vila Real é feita com alguma relutância, as pernas estão pesadas. Mas depressa dou por mim numa sequência delirante de curvas em cotovelo, uma descida daquelas para guardar na memória. Dou por mim a pedalar a velocidades absurdas, a ultrapassar carros, e sim, a correr riscos. Mas quando chego lá abaixo e tenho que meter a pedaleira pequena para começar uma subida interminável, sou recordado do que ando aqui a fazer.
 
Naquele momento não há preocupações com o COVID, ou questões familiares por resolver, não há problemas profissionais, não há aspirações financeiras, não dúvidas e ansiedades avulsas. Sou só eu e o Dentuça, numa bicicleta, a tentar chegar a algum lado. Enquanto houver estrada, e ar nos pneus e força nas pernas, o mundo é um sítio muito simples de compreender.


Não está mal



Razoável


Aceitavelzito


A chegada a Lamego é uma sequencia de subidas que parecem não ter fim. Mas já me sinto um veterano da estrada e tenho aquela confiança baseada na experiencia: se eu simplesmente continuar a pedalar, mesmo que devagar,  eventualmente vou chegar ao destino e todo aquele esforço será mais tarde recompensado. E recompensado sou, depois de mais de 1700 metros de acumulado, com as vistas familiares de Lamego. O parque de campismo fica na própria N2, mas do outro lado da cidade.


Lamego!

Há um enlatado que quebra o zen, quando quase me atira ao chão numa ultrapassagem absurda, forçada dentro de uma faixa estreita, no centro. Cidades! Ao ver que o Fittipaldi ficou inevitavelmente imobilizado numa fila 40 metros mais à frente, o Dentuça sugere que eu lhe alargue o esfíncter com o Specialized 44, mas eu deixo o anormal para trás e sigo para o parque de campismo. As surpresas não acabam, a entrada do parque fica no final de uma subida muito ingreme em empedrado e tenho mesmo que desmontar. Os vizinhos de frente são as caves Raposeira, pois então. 

 
O Dentuça já fazia planos para o serão

O parque de campismo é absolutamente deslumbrante. Assente numa encosta, onde quer que monte a tenda tenho vistas espetaculares. A super prestável senhora do parque empresta-me uma chave para que eu possa sair pelas traseiras, cortar caminho para o centro, e evitar a rampa inclinada da entrada principal. Uso o atalho para ir jantar, num tasco daqueles mesmo tasco! De barriga e alma cheia e depois de umas fotografias, regresso ao parque no frio do crepúsculo, já a pensar no meu saco cama quente e num descanso merecido. 


Final de dia em Lamego













Dia 15. Chaves-Lamego. 104Km. (Estrada).

2 comentários:

  1. http://bacalhaudebicicletacomtodos.blogspot.com/ onde o Idílio conta a sua viagem de bicicleta desde o Alasca à Terra do Fogo.

    ResponderEliminar