sábado, 17 de julho de 2021

Projecto Caramelos: Dia 4 - Na Autoestrada, a Fugir à Polícia, com um Pneu Furado

Caramelos?


Decidido a evitar mais apertões de calor e surpresas tardias na jornada, na manhã do quarto dia levantei o rabo da cama o mais cedo que consegui. Tomei o pequeno almoço, incluído na estadia, tão cedo quanto era permitido e fiz-me à estrada. Desta vez tinha alojamento reservado, e estava decidido a ter um dia diferente. Para minha surpresa consegui mesmo fazer a navegação para fora da zona urbana de Trujillo sem percalços. Normalmente o meu GPS não permite esses luxos, mas naquela manhã tudo corria sobre rodas.


Rumo a Este, como sempre


É claro que esta bonanza não poderia ser duradoura. Depressa percebi que a altimetria para a jornada era mais desafiante que nos dias anteriores. E o que não mudava contudo, era a temperatura elevada, e as grandes distâncias entre terras, amplos espaços onde não havia nenhuma possibilidade de descanso, refugio do Sol ou reabastecimento. O Deserto Espanhol, como lhe chamam alguns Portugueses de passagem, a caminho de destinos mais populares na Península Ibérica, faz jus ao seu nome.


Olha, montanhas!


A manhã foi gasta a deambular por estradas de montanha, a ritmos muito lentos, enquanto a temperatura ia aumentado, até ficar intolerável. Continuava a não haver sombras para parar, nem lugares onde obter água ou comida. O desgaste era grande e o moral da expedição ia descendo ao ritmo que desciam também as reservas de líquidos disponíveis a bordo. Começava a ficar claro que, mais uma vez, não ia conseguir arrumar a etapa a tempo de evitar o calor infernal da tarde, no Deserto Espanhol.


As coisas não são fáceis no deserto


Umas bombas de gasolina foram a minha salvação. Estava a ficar viciado em Aquarius, a coisa mais parecida a uma bebida energética que era possível encontrar em quase todos os postos de abastecimento de combustíveis. Eventualmente a estrada "alisou", depois de uma longa descida, onde cheguei a passar dos 75km/h. Tinha voltado a ficar sem almoço pois não encontrei nada pelo caminho na hora apropriada, estava a ficar frito pelo Sol, mas sabia que já estava perto do destino.


Sombra! Para a bicicleta...


Eu claramente já estava acusar o desgaste do calor, do esforço e da falta de comida. Foi neste estado que rolei até um cruzamento onde a estrada em que eu estava continuava para Oeste, coisa que não me interessava nada. Eu tinha que virar para Este, no sentido de Talavera de la Reina e Madrid. A minha dormida para a noite era em Oropesa, uma cidade a meio caminho. Rolar no sentido contrário era andar para trás,

Para Este, na direcção certa, a única estrada era a Autovía para Madrid, a A-5. Autovía é o nome dado à rede de autoestradas gratuitas, que ligam Madrid com o resto do país. Eles também têm estradas a que chamam mesmo "autoestradas", mas tecnicamente são a mesma coisa. Logo, não é permitida a circulação de bicicletas em nenhuma destas vias. Mas era para aqui que o GPS insistia que eu deveria ir, e francamente, eu não estava a ver alternativas.


O dilema



O percurso que eu fiz


Consultei o Google Maps, que me indicou que eu, de facto, deveria mesmo virar à direita, para Este, para a autoestrada! Não podia ser. E no entanto, fazia sentido e não parecia existir alternativa. De notar que o processo de tomada de decisão decorria junto ao cruzamento, à torreira do Sol, já que como era costume, não havia nem um palmo de sombra em lado nenhum. 

Era tarde. Apesar de eu ter começado cedo, o dia já ia longo. Pressionado pelo calor, tive um momento "fuck it", e abalei a toda a velocidade para a Autovía. Tudo o que eu sabia era que sombra, água e descanso ficavam mais perto naquela direcção. Mesmo que esses luxos fossem obtidos numa esquadra da polícia, sempre era uma melhoria em relação à minha situação actual. A minha análise risco-benefício não era assim tão má.

Na autoestrada fui recebido por um ensurdecedor coro de buzinadelas. Ninguém abrandou nem nada do género, mas imensos automobilistas buzinaram para me avisar do meu "erro". Eu ignorei tudo e todos e rolava na berma a velocidades próximas dos 40km/h. Àquela velocidade depressa estaria debaixo de um belo duche gelado no hotel que tinha reservado e poderia esquecer aquele incidente. 


A Autovía à esquerda


Mas claro, não poderia ser tão fácil. Estava a ensaiar mentalmente o que diria aos policias quando chegassem, coisas como "custava assim tanto plantarem umas árvores para dar sombra?" ou "quem é que foi o palhaço que desenhou a vossa rede de estradas?" quando o som inconfundível de um furo me chegou aos ouvidos. A rolar a toda a velocidade na berma, tinha passado por cima de alguma porcaria e o pneu traseiro começou a perder ar de forma audível. O líquido anti-furos não estava a funcionar e em pouco tempo estava a rodar encima do aro.

Abrandei o suficiente para não dar cabo da roda traseira, mas não parei. Não me pareceu boa ideia parar na AE... Depois reparei que havia uma área de serviço não muito longe e arrastei a bicicleta ferida até lá, instalando-me rapidamente num cantinho onde não estorvava ninguém. Debaixo do olhar curioso de camionistas, desmontei o que pude da bicicleta carregada e removi a roda traseira. 

Não tinha ar. O tubeless estava frito e ia ter que colocar uma câmera de ar, mas resolvi tentar pelo menos voltar a encher de ar e ver se a coisa aguentava. Mas por mais que tentasse, parecia que a minha bomba de ar também não estava operacional. E agora eu sentia que estava a perder rapidamente o controlo da situação. Olhei para cima e questionei "Não tens mais nada para mim agora?" 

E nesse momento, um carro patrulha da Guardia Civil entrou na área de serviço.


O caminho para "casa"


Os agentes olharam para mim, e foram à sua vida. E isso deixou-me a pensar. Normalmente em Espanha não há a balda que se vive em terras lusas, se eles me ignoraram era porque deveria haver uma forma legítima de chegar ali, que justificasse a minha presença na área de serviço. Coloquei a câmera de ar no pneu de trás, montei tudo de volta o melhor que pude e fui dar mais uma olhada no Google Maps.
 
Só nessa altura é que eu percebi. Paralela à Autovía, ao longo de vários quilómetros, seguia uma pista de gravilha, onde era permitida a circulação de veículos. Tinha sinais de trânsito e tudo. Essa pista passava por trás da área de serviço e justificava a minha presença no local. E a de eventuais tractores e maquinaria agrícola. O piso de gravilha era mauzito, um bocado no limite para os meus pneus finos, já para não falar para o meu nível de desgaste naquele momento. Mas era uma alternativa à AE!


Vista à chegada a Oropesa


E foi assim que, depois de reparar a minha mini-bomba e enchido por fim o pneu traseiro, fiz os últimos 30km a rolar em verdadeiro gravel. De vez em quando tinha umas atrevessadelas mais cabeludas, já que a tracção com pneus estreitos e lisos não era a melhor. Mas era suficiente. E por aquelas alturas, suficiente ia ter que chegar.

 
Já fiquei em sítios piores



Dia 4. Trujillo-Oropesa. 128km. (Estrada/AE) 

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