No apartamento onde passei uns dias no Algarve havia uma série de revistas estrangeiras, que me proporcionaram uns momentos de leitura descontraída. Um artigo sobre ciclismo utilitário que me chamou a atenção vinha publicado, imagine-se, na conhecida revista Top Gear. Como ex-trabalhador desta área, e admirador do estilo visual do programa de televisão (embora abomine a linha editorial) fiquei genuinamente curioso por saber o que diziam estes tipos sobre a emergente utilização de bicicletas, como meio de transporte, no Reino Unido. Como se veio a revelar, nada de bom.
Jornalista não gostou de usar licra. Quem o terá obrigado? |
Para ser justo, no pequeno artigo reconhecia-se a habitual jocosidade que caracteriza o franchise Top Gear, mas não era mais crítico com o comportamento dos ciclistas que outros textos, nacionais e estrangeiros, que tenho encontrado (estou-me a lembrar por exemplo de um editorial do Vitor Sousa na Motociclismo). Passar sinais vermelhos, ignorar sinalização e regras de prioridade, alternar entre a faixa de rodagem e o passeio conforme a conveniência, estas costumam ser as criticas mais comuns. Para o autor britânico em causa, acrescia a ideia de ser injusto e incorrecto permitir o acesso à via pública a pessoas que não têm que se sujeitar a qualquer formação ou exames para o fazer (versus o que acontece com os condutores de veículos motorizados).
Bugattis a 400 km/h e... bicicletas?? |
Nada disto é novo, mas cada vez mais estará na ordem do dia, se continuar a aumentar o número de utilizadores de bicicleta nas nossas cidades e estradas. Por um lado a liberdade que a bicicleta proporciona facilita este tipo de comportamentos. Do outro lado da questão temos o problema das infraestruturas e do código da estrada. Tudo foi legislado, desenhado e construído com o intuito de acomodar, agilizar e beneficiar o transito automóvel. As vacas sagradas. O ciclista é muitas vezes posto numa posição onde, se não improvisar, e porventura desrespeitar alguma regra do código, estará a colocar-se em perigo ou a obrigar-se a fazer vários km inutilmente. Sentidos únicos, vias rápidas em meio urbano, estradas sem berma* e com trânsito intenso, cruzamentos perigosos, as questões são muitas e infelizmente pouco conhecidas e consideradas, quer pelo público em geral, quer pelos decisores políticos (o que é notório nas ciclovias que vão aparecendo).
Ciclistas na berma |
A visão da bicicleta como um brinquedo, sem lugar na via pública, ainda está muito presente na sociedade. Mesmo entre a maior comunidade portuguesa de utilizadores regulares de bicicleta, o mundo florescente do BTT, isso é verdade. Não deixa de ser sintomático que, no principal fórum nacional desta especialidade, haja um tópico de 17 páginas onde se discute a eventual obrigação de respeitar os semáforos.
Não é fácil ser um ciclista urbano e um cidadão cumpridor ao mesmo tempo. Isso não invalida que se faça o possível por cumprir as normas, excepto onde elas se revelem claramente perigosas. Circular na faixa do meio, por a faixa mais à direita ser de BUS, numa daquelas avenidas lisboetas onde os carros circulam impunemente a velocidades de auto-estrada, parece-me suicídio, mesmo que seja a postura correcta do ponto de vista do código da estrada. O bom senso obriga, neste caso, à utilização da faixa BUS. Já contornar um cruzamento, com sinais vermelhos, pelo passeio, para poupar tempo, não me parece de todo desculpável. E devo ir pela ciclovia, mal desenhada, cheia de cruzamentos perigosos e de peões ou manter-me, ilegalmente, na estrada? Mesmo tirar uma mão do guiador para sinalizar uma manobra pode ser, em certas circunstancias, perigoso. Será melhor arriscar uma queda a alta velocidade, acossado pelos automóveis, e fazer o sinal, ou não sinalizar a manobra e fazer a curva em segurança? Os exemplos são muitos, e a única solução é ser o bom senso (e não o comodismo) a prevalecer nestas decisões.
Se cruzar montado, o código não obriga o pópó a dar prioridade |
Do ponto de vista demográfico, os ciclistas são uma pequena minoria. É um dado a reter. As minorias são alvos fáceis de críticas. Meias verdades ou mesmo fantasias tornam-se muitas vezes factos inquestionáveis na mente de quem delas não faz parte. Aliás, o ódio ao ciclista anda à solta por aí, alimentado como sempre pela ignorância. Porque "estorvamos", "não pagamos impostos", "não temos seguro", "não usamos capacete", "não temos prioridade", tudo serve de razão a quem dela não precisa para odiar. A mobilidade sustentável é uma causa que passa ao lado de alguns ciclistas, mas pela minha parte, não pretendo dar mais motivos que os necessários para ser visto como um marginal pela sociedade, por mais desequilibrada que eu próprio por vezes a julgue.
*Sim, circular pela berma também não é legal, mas se tiver umas bicicletas desenhadas já é. Giro, não?
A propósito, envio um postito sobre o mesmo tema: http://sicbybikeday.wordpress.com/2009/09/14/a-marca-do-pedal/
ResponderEliminarÉ por estas e por outras que gostava de ver mais gente junta a debater "o que fazer"!
Abraços
Olá,
ResponderEliminarA subir ou a descer a Av. Fontes de Melo, por exemplo, é muito mais seguro e confortável seguir pela via do meio (a mais à direita descontando a do BUS), do que pela do BUS. Não é só a questão de ser ilegal pelo CE, é mais complicada pelas viragens à direita, e pelas paragens de autocarros. Na via do meio mantemo-nos afastados dos movimentos de viragem que é onde surgem os problemas. E dado que a Av. tem semáforos a cada quarteirão, a coisa faz-se bem.
Quanto à sinalização, o CE não a exige para os condutores de velocípedes, pelo que não temos que sacrificar o controlo da bicicleta em nome de fazer um sinal - de qualquer modo, há sinais "obrigatórios" e há sinais de cortesia, e antes do sinal há o olhar, que muitas vezes sinaliza uma manobra.