quinta-feira, 27 de setembro de 2012

No Reino das Percepções Apressadas

Com um aceno negativo, o condutor fez-me compreender exactamente o que estava a pensar. Já tinha visto aquele olhar reprovador antes, muitas vezes certamente, mas uma em particular veio à memória. Aquela expressão de desagrado resignado, de paternalista paciência, como quem diz: estes tipos são todos parvos, o que é que eu hei de fazer...

De repente estava no Sul de Espanha, não muito longe da fronteira, há muitas luas atrás, a estacionar o carro perto de uma praia cheia de história para mim e alguns amigos. Estava decidido a não alimentar os rendimentos do arrumador-chunga local, essa original  exportação portuguesa, e coloquei o carro longe do lugar que ele indicava e basicamente ignorei-o. No regresso vi como ele me olhava, como observava com ar de julgamento a forma como eu conduzia. A sua expressão de censura dizia tudo: "carro com matrícula portuguesa" + "os portugueses são todos umas bestas ao volante" = "este tipo que estacionou sem a minha autorização é uma besta". E uma besta forreta ainda por cima.

Esta posta é uma seca. Foto de gatinho para compensar

Ainda não tinha andado cinquenta metros hoje, de bicicleta, e estava a levar com a mesma expressão, o mesmo aceno negativo, o mesmo tipo de julgamento. Desta vez porque o senhor que seguia no seu pópó no sentido contrario, ocupando toda a estrada, teve que se desviar para não me passar a ferro. Deduzo que ele pensava que a rua teria apenas um sentido, uma distracção algo comum no local em causa. Mas em vez de concluir que estava a cometer um erro, assim que viu um ciclista, tomou logo a decisão mais lógica: "os ciclistas são todos vândalos" + "a rua parece ser de sentido único" = "Este tipo é parvo e eu é que ainda tenho que me desviar para ele não morrer"

É por estas e por outras que tenho pouca paciência para os artistas que por aí se vêem a fazer todo tipo de barbaridades na estrada (e no passeio!) e que dão mau nome ao ciclista comum. Por outro lado, dado o estado da infraestrutura rodoviária em Lisboa, ainda é muito difícil a um ciclista cumprir o aberrante código da estrada a 100%, ou nunca conseguiríamos chegar sequer a nenhum lado. E isso é algo que um automobilista, para quem a infraestrutura foi pensada quase em exclusivo tem muita dificuldade em compreender.

Um amigo meu queixava-se recentemente no Livro-dos-Focinhos sobre vários casos de comportamentos "perigosos" de ciclistas que ele tinha presenciado e concluía que assim não lhe ficava grande vontade de dar ele próprio umas pedaladas, já que claramente não queria ser confundido com aquele tipo de gente. E assim andamos, todos cheios de razão, todos um bocado frustrados ao fim do dia, quando no fundo todos queremos apenas chegar ao destino em segurança. O Snob falava justamente deste tipo de agruras do commuting, no seu livro mais recente, e dava umas sugestões, se calhar tenho que ir ler aquilo outra vez.

1 comentário:

  1. "já que claramente não queria ser confundido com aquele tipo de gente"

    Também não gostaria de ser confundido com alguns condutores de outro tipo de veículos...

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