Atenção: Sua excelência o enlatado! |
Depois dos incidentes da Massa Crítica do Porto, parece que as queixas sobre os STCP não são de agora. Como está bem de ver neste testemunho (via Um pé no Porto e outro no Pedal), a coisa pode ser mais grave do que "apenas" um motorista que se recusou a esperar pela passagem da caravana da massa crítica de Sexta Feira. Nos STCP pode bem existir uma cultura de abuso em relação aos utentes mais vulneráveis da via pública, uma coisa que, em Portugal, não pode propriamente surpreender ninguém.
É que não são só as infraestruturas que escasseiam para podermos circular em segurança, as mentalidades levarão muito mais tempo a mudar do que o nosso espaço físico urbano. As pessoas têm tendência a esquecer, mas a ignorância é a norma na sociedade portuguesa. Reparem, se tiverem o 12º ano, então parabéns, pertencem a uma minoria de cerca de 17% da população adulta. A mesma população em que 10% não detém qualquer diploma de ensino e em que uma maioria de 59,2% contenta-se com o ensino básico ou nem isso. É com esta malta que nos cruzamos na estrada.
É claro que ser detentor de um determinado título de ensino não é um indicador fiável de comportamento na via pública, mas existem outros dados sobre o país de que todos dispomos e que ajudam a compor o quadro:
- Portugal é uma sociedade patriarcal e paternalista, fortemente hierárquica. Não se questiona a autoridade. É a terra do "Patrão" e do "Doutor". Ambos fazem o que lhes apetece e tratam os subordinados como lhes apetece. Ora se o Doutor e o Patrão andam de carro, o ciclista só pode ser um subordinado, portanto a expectativa é que ele se encolha e saia da frente. Existe uma clara hierarquia social nos meios de transporte, e o ciclista está abaixo de tudo e de todos. Isto pode parecer para lá de simplista, mas acreditem que é assim que muita gente vê o mundo e age em conformidade.
- Portugal é também um país machista, onde a violência sobre as mulheres ainda é algo vulgar. Se acham que isso não tem nada a ver com bicicletas, pensem de novo. A violência de género é "apenas" uma reacção do homem que cresceu dentro de uma certa cultura, em que os pressupostos incluíam que ele tinha uma série de direitos sobre a companheira, "a minha mulher", inclusive de a agredir se a sua honra se sentir beliscada. Muitos condutores vêem de maneira semelhante o seu "direito" de acelerar pela via pública e podem ser extremamente violentos se considerarem que o ciclista os está a impedir, deliberadamente ou não, de exercer esse direito. Esperar atrás de um ciclista numa rua apertada pode originar todo o tipo de comportamentos agressivos.
- A legislação portuguesa reflecte o tipo de sociedade que temos, nesse sentido é democrática: favorece os mais fortes. Se o código da estrada já é aberrante, não há mais nada que proteja o ciclista. Experimentem ir apresentar queixa à PSP por causa de um automobilista que vos tentou atirar ao chão propositadamente. Se estiverem feridos eles ainda fazem alguma coisa, mas se foi "só" uma ameaça e um susto eles ficam com cara de caso a olhar para nós, como se estivéssemos a descrever algo muito estranho. É que na práctica não há nada de ilegal em ameaçar um ciclista e em usar um veículo como uma arma. Como noutras áreas, reina a absoluta impunidade.
Acrescentem a actual crise económica brutal, os 16% de desempregados oficiais, e a depressão crónica em que o país entrou. Juntem o facto de haver cada vez mais ciclistas a circular nas ruas das nossas cidades, e é quase natural que os incidentes deste tipo se repitam no nosso caldeirão social. Eu próprio, desde que voltei, já senti na pele todo o tipo de problemas que nunca presenciei em Londres. Desde razias e apertões propositados, taxistas que me tentaram atropelar, automobilistas que aceleram o carro atrás de mim no semáforo indicando que me passam a ferro se eu não sair da frente, um fartote. É gente que tem a cultura que tem, e essa não vai mudar tão cedo.
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